O CUSTO DA VIDA
Quando eu comecei a escrever os roteiros do podcast, eu não pensei muito sobre organizar eles de acordo com datas comemorativas, feriados ou outras datas importantes no nosso calendário, sabe? Inclusive, eu acho de uma boa organização quem consegue fazer isso, admiro a gaveta de material criada e a equipe dedicada em produzir essas pautas relevantes. Afinal de contas, organização requer muito mais do que só uma mente capaz de controlar as informações externas e transformá-las em harmonia. A organização também requer identificar o trabalho como múltiplo, como construído por várias mãos e delegá-lo. Escrever requer tempo, requer ócio, requer referências. Revisar texto requer concentração, gramática e vocabulário. Gravar o texto e transformá-lo em som, requer silêncio, equipamento, espaço e humor. Editar o material e transformá-lo em programa requer sensibilidade, um ouvido apurado e muita criatividade.
Para a vida acontecer, a gente precisa de muita coisa acontecendo e tudo isso tem um custo. O custo para o 8 de março perder força no seu discurso foi ele se perder no nosso calendário.
Quando eu acordei no sábado, recebi uma mensagem de feliz dia da mulher e fiquei meio confusa, pra ser sincera, eu mesma nem lembrava da data e esse é o poder daquilo que a gente consome de nos influenciar. Será que a gente lembraria das coisas que costumam ocupar nossa mente caso não estivéssemos cronicamente conectados?
Aparentemente, eu e muitas amigas só percebemos o 8 de março, pois ele se infiltrou timidamente no calendário, quer dizer, nem isso, pois o google e a Apple removeram literalmente o lembrete da data do nosso calendário. A infiltração se deu por alguns posts nas redes sociais, pelo cookie que eu recebi quando fui tomar café na padaria e pelo cara inconveniente desejando feliz dia da mulher apenas para as mulheres do seu mesmo sangue, provavelmente as poucas que consegue respeitar, se é que isso é respeito.
Mas tá, esse não era para ser um episódio sobre o Dia da Mulher, já que ele chega dias depois do 8 de março e nem sei de fato se eu quero falar e escrever sobre a data que me deixa com uma cara retorcida e de poucas alegrias quando ouço “parabéns!”. Parabéns pelo que? Por eu ter sobrevivido mais um ano? Por eu não ter virado número em mais uma tabela que indica as altas taxas de violência contra mulher?
Bom, eu às vezes penso que eu sou meio pessimista em relação a esse dia e que eu deveria abraçar mais a feminilidade, reclamar menos, sabe? Porque eu amo ser mulher! Gosto mesmo, e como eu li num post do Portal Lunetas que ouviu meninas de diferentes lugares do brasil sobre o que elas pensam sobre seus direitos e o futuro, eu amo ser mulher por me sentir parte de uma comunidade que acolhe”, quem disse isso, foi a Anna Lee do Rio de Janeiro. Mas também concordo muito com outro depoimento, o da Marie Catherine, de 10 anos de Curitiba, falando que ela gosta de ser menina, pois tem menos chance de ser calva. Tá errada? Às vezes, uma das poucas vantagens de ser mulher é ter menos chance de ser calva, sabe?
Porque em quais outras áreas temos mais chances na vida?
Há algum tempo, eu tive uma conversa com uma conhecida que ocupa o cargo de VP numa das 5 maiores empresas do mundo no segmento de alimentos e bebidas. Só para ela chegar nessa posição, foram muitos anos e uma estrutura muito bem solidificada para conseguir construir a carreira. Mas o ponto aqui, nem é tanto sobre ela e sim sobre um momento do seu trabalho que proporcionou quase que um laboratório:
Abriram seis novas vagas na multinacional em que ela trabalha, e essa conhecida, como VP, estava encarregada de preencher essas vagas. Então fez uma lista de 3 homens e 3 mulheres que seriam promovidos de seus cargos para ocupar as 6 posições.
Cada um desses profissionais foram chamados separadamente para informar a promoção ao novo cargo e dos 3 homens promovidos, todos negociaram o salário para ganhar mais do que o oferecido inicialmente. Já todas as 3 mulheres promovidas, agradeceram e ficaram em silêncio sobre uma negociação de salário para o novo cargo.
A vp conhecida me contou que se segurou atrás da mesa para não falar com as mulheres e exigir que elas pedissem aumento, que negociassem o salário, que não só aceitassem a vaga nova assim, pois havia uma margem de negociação disponível, ela poderia dar esse aumento, mas como também estava numa posição de profissional ali, nao poderia sugerir isso além de perguntar um simples “você está satisfeita com o salário que estou te oferecendo para o cargo?” e ouvir não dos homens e sim das mulheres.
Outro ponto que também podemos adicionar a essa história, é que apesar de falarmos de 6 profissionais extremamente competentes e aptos para os cargos, as mulheres eram mais especializadas para ocupá-los. Estudaram mais, tinham mais conhecimento nas áreas, não só o potencial de crescimento, mas o know-how da coisa.
De um modo geral, mulheres costumam ser mais especializadas do que os homens. É o que mostra uma pesquisa da Teva Indices apontando que as mulheres que ocupam os altos cargos de liderança possuem um grau de especialização maior do que as dos homens em todos os níveis da educação superior. A diferença é maior principalmente entre os executivos com mestrado: 44,5% dos homens possuem mestrado, já entre as mulheres, esse percentual salta para 60,2%.
Mas a gente tá cansada de ver que saber mais não necessariamente coloca a mulher como opção para os cargos de liderança e garante uma equidade de salário, já que mulheres recebem 19,4% a menos que os homens, informação saída direto do Relatório de Transparência Salarial feito aqui no país.
Quando a gente ouve essa história e recolhe os dados, pode facilmente pensar que existe disparidade salarial por uma percepção de que as mulheres hesitam em negociar seus salários. Essa noção não só simplifica excessivamente as desigualdades, mas também atribui culpas indevidas às profissionais. A impressão de que as mulheres poderiam ganhar o mesmo que os homens simplesmente negociando o salário com maior frequência nos leva a reforçar o sistema machista, já que não ajuda a observar as verdadeiras causas das disparidades. É dizer que esse problema é só para a mulher resolver. Em vez disso, deveríamos nos concentrar em consertar por que as mulheres não se sentem capazes de se candidatar à promoção, não se sentem seguras em negociar seu salário — e como as empresas podem garantir que elas sejam avaliadas de forma justa quando estiverem concorrendo.
Uma coisa que eu não consigo deixar de pensar, é sobre o custo de uma vida para você chegar numa posição onde o seu conhecimento e capacidade são medidos com lentes de construções sociais. Bom, para uma mulher saber mais, ter mais especializações, mesmo ganhando menos, há um custo: de tempo, financeiro, de vida. Ter um mestrado, uma pós, um doutorado exige tudo isso e muito mais.
Talvez não seja atoa, mas no dia 8 de março eu estava lendo O Custo da Vida de Deborah Levy.
A Deborah nasceu em Johanesburgo, em 1959, e sua família emigrou para a Inglaterra no início dos anos 1960. É dramaturga, poeta, ensaísta e romancista. E o Custo da Vida é o seu segundo livro de memórias, que, para mim, ele não é apenas sobre os marcos dolorosos e desafiadores em sua vida — o fim de um casamento, a morte de uma mãe, a maternidade — é sobre o que é estar vivo.
Após o fim de seu casamento — em um momento em que sua carreira está em ascensão — Levy e suas duas filhas pequenas se mudam de uma casa confortável, espaçosa, com um pé de alecrim imenso no quintal para um bloco de apartamentos no norte de Londres com corredores estéreis e problemas de aquecimento. Ela faz do apartamento uma história, descrevendo as abelhas que são suas inesperadas companheiras de quarto, suas prósperas plantas de morango e as exóticas laranjas com cardamomo que ela e suas filhas comem no café da manhã, mas também descreve a vida com os desafios cotidianos enfrentados por uma mulher que passou boa parte da vida casada com um homem e construindo o que ela chama de lar de família.
“Desfazer o lar de uma família é como quebrar um relógio. Tanto tempo passou por todas as dimensões daquela casa. Não se sentir em casa na casa de sua própria família é o começo da história mais ampla da sociedade e de suas mulheres descontentes.”
Todas as vezes que eu penso sobre o divorcio, sobre uma separação, sobre liberdade, sobre o desmantelamento do que a Deborah Levy chama de um lar de família, eu penso sobre o custo que essas coisas têm para uma mulher. Literal e metafórico.
Inclusive, me pego pensando muito sobre o trecho em que Deborah Levy fala sobre a recusa de Simone de Beauvoir aos planos de Algren, um de seus encontros românticos ao longo do curso de sua vida, que pede a ela para deixar a França, ficar em Chicago, morar em uma casa, ser a mulher dele e ter os filhos dele. O custo de tornar isso realidade seria muito mais alto para Simone do que para Algren, e ela sabia disso, por esse motivo, retornou à França e a sua vida como escritora, alegando que aquelas eram as coisas e os lugares que faziam sentido para sua existência. O custo de tornar realidade os desejos de um homem é sempre muito alto para uma mulher.
Como, então, na meia-idade, uma mulher que possivelmente nunca se sentiu em casa em sua própria casa vai embora? Como ela alcança a mesma liberdade que um homem? Financeira e socialmente falando, sabe?
O que significa ser livre - como artista, mulher, mãe ou filha? E qual é o preço dessa liberdade?
“A liberdade nunca é de graça. Quem quer que tenha lutado para ser livre sabe o quanto custa.”
Quando mudei para São Paulo, foi numa dessas buscas por liberdade e separação. Eu tinha 20 e poucos anos e sabia pouco do custo das coisas:
Pagava R$800,00 num quarto alugado em um apartamento de 3 quartos onde moravam 5 pessoas;
O aluguel de 3 meses contatinho na minha conta do banco;
Eu tinha dois trabalhos, entrava no metrô, na linha azul do Ana Rosa, às 6h20min da manhã para chegar no meu trabalho presencial às 7h00min em ponto. O bilhete custava R$3,80, ida e volta, para 20 dias úteis custava R$152,00;
Gastava de R$50 a R$70 na feira, R$150 a R$200 no mercado;
A cama, R$600 parcelados no cartão da amiga, a arara para pendurar as roupas custou R$80 reais no mercado livre;
Espelho com moldura de madeira, coloquei no caminhão da mudança vindo do sul e chegou inteiro em São paulo.
Meu primeiro passo para existir com mais qualidade de vida, com mais liberdade, com mais tranquilidade em São paulo, se deu 8 meses após a minha chegada. Por meio do trabalho que se manteve fixo e seguro, eu aluguei um estúdio de 45m quadrados no Bela Vista, bairro na região central de São Paulo, para morar sozinha.
R$1600 de aluguel.
Energia elétrica, R$90;
Gás, R$38;
Microondas, R$390, presente da mãe;
Fogão, R$450;
Sofá, voucher na Dafiti;
O espelho com a moldura de madeira ali, ainda me encarando;
Agora eu tinha um armário embutido na parede onde podia guardar meus pertences;
Jogo de 4 pratos, R$79,90;
Balde, vassoura, pá, lixeira, panos de chão e produtos de limpeza, R$170.
Na frente desse meu antigo prédio, tem uma padaria que funciona 24 horas, que era benção e maldição ao mesmo tempo. A benção, era que em qualquer momento que batesse fome, você podia descer os 6 andares e aproveitar o melhor arroz e feijão da vizinhança por R$25,90 ou a fatia de pizza com bastante tomate e manjericão, R$10,90.
A maldição, é que às vezes, o pós balada ou pós jogo do Atlético mineiro se celebrava ali também, então, sempre que eu olhava pela única janela do apartamento, tinha movimento madrugada adentro. Eu nunca acompanhei tanto futebol, mas com frequência me pegava torcendo contra o Atlético Mineiro para que eu tivesse uma noite tranquila em que eu pudesse escrever meus roteiros de trabalho ou dormir em paz nas costas do sofrimento de uma torcida. Juro que hoje, que moro em outro endereço, pelo peso na consciência, me pego torcendo para o Atlético vencer todos os jogos.
A vida nesse apartamento foi a vida de uma jovem de 20 e poucos anos que passava muito tempo fora de casa, trabalhando, explorando os metrôs e a noite da cidade. Que quando retornava pra casa, não encontrava muito bem uma casa, silêncio ou aconchego.
Apesar disso, minha dedicação estava 100% focada em trabalhar e construir uma segurança financeira, pois desde nova eu entendi que sim, podem ter coisas que o dinheiro não compra, mas para uma mulher ser livre na sociedade atual, a independência financeira é algo essencial.
Um tempo depois, eu mudei para outro apartamento 3x maior e com um aluguel de 3.500 reais. Era um apartamento silencioso, com bastante luz natural e uma vista para o horizonte da cidade, coisa rara por aqui. Este endereço me trouxe paz, foi onde eu sinto que encontrei foco e tranquilidade para trabalhar, para criar, para existir.
Assim como Deborah Levy, nessa época eu “Comecei a me dar conta de que o que eu precisava era de uma quantidade suficiente de coisas certas.”
Precisava de uma rotina, de refeições organizadas, de uma casa limpa, de tempo de ócio, de tempo com o mundo, com os amigos e de tempo sozinha, na minha casa, embaixo do meu teto, em um quarto só meu, assim como escreveu Virginia Woolf em seu ensaio “Um quarto só seu”, que nasceu com uma tarefa: a autora foi convidada a falar sobre "Mulheres e Ficção".
É natural se deparar com esse título e imaginar que Virginia Woolf tenha escrito sobre como é o quarto homônimo - seu design e conteúdo, como ele se parece ou que cores deve ter na parede. Mas ela lida com uma questão mais fundamental - que é preciso um quarto próprio.
Em sua obra, Virginia Woolf examina os desafios e barreiras que as mulheres historicamente enfrentam em atividades artísticas e literárias. Ela destaca como as percepções sociais, a instabilidade financeira e a falta de acesso à educação e privacidade impediram a capacidade das mulheres de escrever e se envolver em atividades intelectuais em sua época e não acho um exagero dizer que é um problema que se estende até os dias atuais em tantas outras nuances.
“Não se pode pensar bem, amar bem, dormir bem, se não se jantou bem.” - Virginia Woolf






Woolf afirma que alcançar a independência financeira e espaços privados é crucial para a liberdade criativa das mulheres e que para ter um quarto só seu, é preciso ter dinheiro ou algum outro privilégio. Conforme a narrativa evolui, fica claro que, para ser livre, uma mulher que seja escritora de ficção precisa de £ 500 por ano, valor estimado para a época.
É complicado quando a gente coloca um valor estipulado para determinar a liberdade de alguém, é difícil associar que um conceito tão amplo e pessoal do que é ser livre, para a mulher, é marcado por um preço. Mas na realidade, será que não é assim?
Eu acredito que toda mulher deve ser independente financeiramente, para que você não seja um personagem secundário na sua própria vida, para que não se torne a mulher de alguém, a filha de alguém, a irmã de alguém. A minha mãe é completamente independente financeiramente do meu pai. Eles moram juntos, compartilham a vida e as finanças, mas a minha mãe é a primeira geração da minha família a conquistar independência financeira dos pais e do marido. Ela gravou muito essa mensagem dentro de casa e sempre colocou essa como uma das principais lições que queria que eu aprendesse, para que assim, nunca precisasse ficar em um ambiente que me desrespeitasse.
Escrevendo agora, eu me lembrei de um vídeo que trouxe bastante impacto sobre desrespeitos que a gente pode sofrer nos mais variados ambientes, inclusive no ambiente familiar, do qual é muito saudável que a gente conquiste independência também.
Tem um vídeo da Louise Bourgeois absolutamente incrível de assistir, deixei ele acima para acompanhar. Por si só, ele é uma obra de arte, pois diz muito mais do que apenas o que a gente ouve. Esse vídeo, Louise Bourgeois Peels a Tangerine, no caso, descasca uma tangerina, vou contar um pouco sobre ele aqui: Louise conta sobre sua infância, que depois dos jantares em família, todos “deveriam trazer algum tipo de entretenimento”. Você “podia cantar”, “podia recitar”, “podia ser... engraçado”. O entretenimento no jantar claramente vinha com um senso de obrigação. Não era, exatamente, divertido. Neste vídeo, a Louise demonstra como descascar uma tangerina, só que essa era a “forma de entretenimento” escolhida pelo seu pai.
Mas veja bem, “descascar” uma tangerina não é a lição em questão. “Você tem que entender que em uma tangerina há dois pontos importantes”, ela diz. Esses pontos guiam a figura humana que ela passa a desenhar na tangerina, e isso traz à mente alguns de seus desenhos de figuras calvas e de seios grandes. Bourgeois, cômica em seu senso de propósito e curiosa em suas escolhas de palavras, constroi sua demonstração até o “ponto importante”, “a coisa importante” que “você tem que entender”. Ela nos mantém em suspense até remover a casca, sua história evoluindo, com força, para uma declaração feminista.
Ao descascar a tangerina com o método do pai, ele remove uma pequena figura com contornos de corpo humano, uma face alaranjada e com as texturas da casca da tangerina e outra apresentando o seu interior, aquela parte mais fibrosa, esbranquiçada, chamada albedo (anota aí para os seus conhecimentos aleatórios), só que por conta do recorte feito, se apresenta como um falo logo no centro do corpo. Então, a tangerina que era só uma tangerina, vira uma ferramenta para constranger Louise na mesa de jantar, onde o pai então falava que ele queria descascar a Louise da Tangerina, mas não poderia ser ela, já que até a casca tinha um pau, uma pingola, uma coisa estúpida de se falar para filha na mesa de jantar. Nao é atoa que a Louise se tornou uma artista feminista e que desafiou os papéis tradicionais de gênero. Suas obras frequentemente abordam questões de sexualidade e gênero.
Ninguém quer sentar em silêncio numa mesa onde te falam que a tangerina tem mais valor social do que você, por ter um falo.





Talvez essa seja uma pauta importante para mim, pois eu conheço mulheres que estão em situações onde são desrespeitadas e não se sentem capazes de sair desse lugar por não ter estrutura financeira, um emprego, independência. E o triste, é que algumas delas não se sentem confortáveis em receber a ajuda de amigas e familiares, pois essas mulheres tem sim orgulho próprio e não se sentem bem vivendo com a ajuda financeira de amigas ou irmãs. Elas querem construir a sua própria forma de sair desses relacionamentos, mas às vezes, inclusive por abuso psicológico do parceiro, essa mulher não se sente capaz de fazer isso. Por isso, a estrutura é sempre muito importante e se você é uma mulher nessa situação, não sinta vergonha em pedir ajuda. O que você está vivendo não é fácil e você não precisa passar por isso sozinha.
Em O Custo de Vida, livro da Deborah Levy, tem uma parte que pessoalmente me tocou muito. Deborah nos conta um pouco sobre o momento em que ela, já divorciada e morando em um novo apartamento em londres, comprou um meio de transporte: uma bicicleta elétrica.
“Fiquei obcecada por minha bicicleta elétrica. Eu tinha rodas. Certa noite fui com ela a uma festa a pelo menos 30 quilômetros de distancia”.
Para mim, essa frase diz tanta coisa. A possibilidade de ter rodas trouxe para essa mulher a oportunidade de ter uma vida social, de ter tempo em liberdade para ser mais além de mãe e escritora, para ir além das ruas do seu bairro, ao mesmo tempo em que a ajudou em todas essas outras tarefas e papeis citados. A bicicleta era o meio de transporte para ir ao mercado fazer compras necessárias para o jantar com suas filhas e a levava até a casa de uma amiga, que cedeu uma cabana no jardim onde ela podia escrever em paz e sem ser interrompida.
Essa descrição me levou de volta para o momento onde eu comprei meu carro e como ele teve um papel fundamental na minha separação em 2024. Não só o carro, mas a independência financeira de modo geral, porém eu vejo o carro com um símbolo muito forte disso.
Foi nesse carro que eu coloquei as coisas mais valiosas para mim, as coisas que materializam a minha pessoa, e fui rumo à minha nova vida. O carro tem um simbolismo muito forte de liberdade e autonomia. Com toda certeza, seria possível fazer isso sem um automóvel, mas é inegável o quanto essa estrutura em torno de mim me trouxe mais coragem e confiança para não permanecer em um lugar que eu transformei em uma casa de família, onde eu plantei um jardim inteiro, mas não me sentia em casa.
Quando os problemas nesse relacionamento ao que me refiro começaram a aparecer, eles vieram de fora, de pessoas da família desse ex e sempre com um tom que ameaçava a minha liberdade e inclusive, a minha privacidade.
Para eles, eu não deveria ter colocado um diu e ter autonomia própria sobre o momento em que eu desejava ter filhos. O planejamento familiar e o meu projeto de vida foram desaprovados nesse ponto.
Todos os nomes da família do meu ex companheiro foram liberados na portaria, com o direito de ir e vir, de entrar em minha casa e na minha vida sem aviso prévio, sem pedido de licença, como se fossem donos de um espaço que tinha um contrato no meu nome e do meu ex parceiro e do qual eu pagava 50% do valor total para usufruir.
Nesse momento de julgamentos e muita falta de respeito à privacidade alheia, não acho que foi coincidência que bateram no meu carro duas vezes em uma única semana.
Eu tenho dois lados, um é o “preciso falar com a minha psicanalista" e o outro é o “preciso falar com meu tarólogo”. Depois dessas duas batidas com o carro, eu liguei para essa segunda fonte e ele me avisou que havia uma energia de sufocamento ao meu redor, e vinha muito de encontro a essa minha percepção da minha liberdade.
Nesse período até que eu consultei com ele, eu fiquei sem carro, por que tive que deixá-lo no concerto. Meu carro novinho, frente e trás completamente amassados por batidas que eu nem tive responsabilidade. Ainda bem que eu não arquei com os custos financeiros, pois não era a culpada dos acidentes, porém mais de um mês sem carro para quem tava amando viver em liberdade, e para quem estava morando no interior e dependia do carro para ir a são paulo trabalhar, foi um baque, mas serviu justamente como uma dessas situações em que você aprende a enxergar quais são realmente as ferramentas da sua liberdade. O que realmente te faz uma mulher livre: é o poder ir e vir.
O custo de sair de um relacionamento que acaba com a sua autoestima, com a sua confiança, com o seu bem estar físico e psicológico. Começa com o custo muito alto de encontrar a coragem para sair da relação. Vem seguido de uma cobrança imensa de controlar a ansiedade, o medo, a insegurança e procurar outro lugar para viver. Passa pelo custo não ter a serenidade, a calma e a tranquilidade, características muito destinadas à figura feminina, sentimentos que eu desconheço há muitos e muitos anos.
Passa pelo custo do calção do novo aluguel, pelo custo da mudança, de uma nova pá, uma nova vassoura, um novo rodo e passa pelo custo de não saber em qual lado da cama dormir na casa nova.
O custo de vida é sempre muito alto e tem vezes que pede muito mais do que a gente acha que é capaz de pagar, mas, como uma última tentativa nesse episódio de ter uma abordagem mais positiva, é possível entender esse custo como um caminho que cria novas possibilidades, novas histórias e uma nova vida. Conforme a gente vai ganhando maturidade nesse mundo, a gente vai conhecendo o preço das coisas e assim como escreve Eliane Brum, “nosso mundo acaba várias vezes no espaço de uma vida. Mas sempre temos a chance de recomeçar, então não adiem os começos, porque o fim já está dado.”
O custo será cobrado.
Como disse Levy na última frase do livro: "O que você está lendo agora é feito a partir do custo de vida". Para escrever tão bem, o custo de vida é claramente o preço certo a pagar.
O custo da vida é viver.