Vienna

A ideia de fazer uma viagem para celebrar os meus 30 anos veio justamente de um lugar em que me faltava energia para celebrar essa data. 

Em Novembro de 2024, eu tive um daqueles momentos de epifanias, onde enxerguei minha vida de um lugar diferente, de uma distância diferente. Foi uma clareza súbita que me abraçou e eu entendi muitos dos meus movimentos anteriores: eu tinha muito receio de seguir em frente após o meu divórcio. 

Eu acho válido falar, que eu ainda acredito no amor como um todo, como essa ação que a gente pratica e esperamos que pratiquem com a gente. Para mim, amor sempre foi verbo, e a maior prova disso é que para se sentir amado, não basta ouvir eu te amo. 

Quando eu aceitei construir uma vida ao lado de uma pessoa, compartilhar uma casa, planos e objetivos futuros, eu realmente me coloquei 100% nessa experiência. Mergulhei nesse momento da vida onde o ato de relacionar-se foi importante, onde o amor podia falar mais alto e onde eu enxergava meus planos se fundindo aos planos da outra pessoa, as ideias convergindo, tudo fluindo nessa mesma direção, um caminho escolhido em conjunto para ser trilhado por duas pessoas. Uma dinâmica de parceria.

E boom!

A dissolução disso aconteceu de forma abrupta, difícil de assimilar. Em determinado momento, quando tudo explodiu dentro de mim, eu me vi como uma imagem de desenho animado em que o personagem sai correndo tão rápido que deixa para trás as roupas, o cabelo, os sapatos, uma parte de si, tudo em nome dessa fuga instintiva para se salvar do perigo iminente. Geralmente essa parte que fica para trás, demora um tempinho para assimilar que o corpo ao qual pertence saiu correndo, né? Então, eu me senti assim por muitos meses. Uma parte, a que foi embora, em movimento montando um novo apartamento em outra cidade, seguindo a vida, fazendo supermercado e buscando focar no trabalho. A outra parte, ainda assimilando que estava solta no espaço e tempo, que precisaria procurar o seu corpo, o meu corpo, voltar para o seu lugar, se reintegrar. 

Essas duas partes demoraram meses para se reencontrar, e quando finalmente uma alcançou a outra, um pouco de clareza tomou o ambiente. 

Mesmo fazendo a escolha de partir, é muito difícil estar nesse lugar e seguir essa decisão quando há amor. A parte que foi embora primeiro, que tomou a decisão de que precisava sair daquele lugar, daquela relação, daquela dinâmica que a deixava por dias na cama pensando o que faria, tomou esse impulso corajoso inicial, mas hoje, eu percebo que em nome do amor que sentia, resolveu se manter fiel a quem ela era quando fugiu. 

Por meses, eu me vi com medo de mudar qualquer coisa sobre mim, sobre minha rotina, meu trabalho, sobre grandes experiências de vida, com receio de me tornar uma pessoa muito diferente de quando eu parti. 

Eu, que viajava com muita frequência antes, decidi que ficaria sem viajar por meses. 

Eu, que já estava com episódios e a ideia desse podcast prontos, engavetei tudo, posterguei tudo, pois sabia que lançá-lo iria abrir um novo momento na minha vida e exigiria mergulhar nas minhas experiências para falar a partir delas. 

Eu me agarrei às mesmas camisetas, às mesmas séries, aos mesmos costumes.

Quando eu decidi ir embora, eu estava pronta para me despedir dos meses ruins, dos meses com muitos sintomas de depressão, os meses de confusão mental, de ameaças e manipulações, mas antes desses meses, teve ali uma relação de alguns anos que foi muito bonita, muito feliz e plena. Eu não tinha dúvidas em me despedir das tristezas, mas como se despedir das alegrias?

Mudar qualquer coisa em mim seria me tornar uma pessoa diferente, seria seguir em frente, deixar aquele relacionamento no passado para nunca mais retornar para ele e eu ainda não estava pronta para fazer isso. 

E ainda havia a questão de que eu estava dividida em duas. Tinha aquela parte que se desprendeu de mim, a que demorou a assimilar a partida.

Uma parte minha chegou em junho nesse novo endereço, mas a segunda parte só deu as caras por aqui em novembro. Era domingo à noite quando ela bateu a minha porta, eu nem estava esperando visitas. Eu não queria receber ninguém, mas ali estava ela. Deixei entrar, não só em casa, mas de volta na construção do meu ser e essa reintegração foi uma das noites mais difíceis da minha vida. Talvez, por conta da minha lua em câncer, eu fico poetizando esse acontecimento, mas a verdade é que eu não consigo falar dele de outra forma, senão dessa. Eu não consigo olhar pra essa noite sem olhar com esse filtro da escrita, porque talvez olhar diretamente seja ainda mais triste. 

Com a reintegração dessa segunda parte, foi como se eu pudesse ver coisas novas sobre mim. Foi como se uma análise externa tivesse chegado e gravado novas informações na minha mente. Foi nesse processo, que eu percebi o quanto eu havia evitado viver novas coisas nos últimos 6 meses. O quanto eu abri só um pouquinho de mim, só o necessário, para que eu seguisse existindo e tendo uma manutenção básica da vida, mas nada além do que já me era muito familiar: a lista do mercado era sempre a mesma, as ruas que eu andava eram as mesmas, o choro da terapia era sempre o mesmo. 

Estacionar a minha vida era uma das maiores violências que eu poderia cometer contra mim, desta ação, na época, inconsciente, não brotava nenhuma prova de amor e sim só mais uma prova de manipulação e violência psicológica que deixam marcas inimagináveis na nossa vida e na forma como a gente se comporta. Eu chorei copiosamente na noite da reintegração, em que eu percebi o que eu, deliberadamente, estava fazendo comigo. No dia seguinte, para não passar o dia chorando, eu fui ao cinema às 4 da tarde e dormi a sessão inteira. 

Esse é um dos meus hobbies preferidos: quando eu ando muito ansiosa, sem conseguir dormir bem, graças a flexibilidade dos meus horários de trabalho, eu compro uma sessão no meio do dia seguinte e vou tirar um cochilo na sala de cinema. Eu durmo com uma tranquilidade que não consigo alcançar na minha própria cama em meio a ansiedade. 

Bom, e o que a gente faz quando percebe que estacionou a vida pelo luto de um relacionamento?

A gente movimenta ela. 

A viagem veio por isso.

Eu não estava num momento de muitos trabalhos, tinha feito uma nova mudança há alguns meses, arcado com altos custos para realizar tal, gastos com advogados, finalizar união não é barato, eu não estava preparada ou havia me planejado para o giro total que a minha vida deu naquele momento. Eu me sentia completamente insegura, e não era de autoestima, eu não me sentia segura em nenhum canto do mundo, com nada. 

Em junho e julho, eu andava pelo apartamento novo jurando que alguém bateria a minha porta em qualquer minuto para me tirar dali. Faz muito sentido eu estar insegura dessa forma, pois eu havia construído uma imagem de seguranca na minha cabeça sobre o casamento, sobre a nova vida e rapidamente tudo isso mudou provando que até mesmo aquilo que a gente acredita ser sólido, pode desmoronar. Eu convivi com essa sensação de que tudo iria desmoronar e que eu precisaria pegar minhas coisas e sair correndo mais uma vez durante dois meses inteiros no meu próprio lar, sabe? Demorou até eu me sentir em casa, até eu assimilar de novo o que era uma casa. Demorou muito e digo que ainda não assimilei 100% o que é me sentir segura de novo. 

Em setembro, eu consegui pendurar os quadros no apartamento. 

Em novembro, eu já não estava mais fugindo, eu estava me reintegrando. 

O processo de luto de relacionamento é uma coisa muito curiosa, o luto vai acontecendo ali aos poucos, às vezes, meio silencioso e outras vezes impossível de escutar qualquer outra coisa que não seja essa dor. A Ana Suy, em A gente mira no amor e acerta na Solidão, escreveu que quando a gente perde alguém enquanto se ama esse alguém, é perder um alguém e não o amor que se tem. Ou seja, o amor fica, o afeto se mantém ali muitas vezes inalterado, muitas vezes em metamorfose, muitas vezes até mais vivo do que antes. 

E o que a gente faz com esse amor que fica e principalmente, o que a gente faz com a nossa visão de quem era o outro e visão de quem a gente era para o outro? 

A experiência psicanalítica nos fala que aquilo que vivemos não vai embora de nós, altera-se, mas tudo leva tempo para mudar de forma, assim é com esse amor que fica, com essas construções que temos em nossa mente. 

Mas como que isso iria mudar dentro de mim, como eu direcionaria esse amor, essa construção interna de mim e do outro, se eu não permitia que nenhuma novidade chegasse para alterar isso? Lembra? Fechada em meu apartamento, evitando tudo que pudesse ser novo demais, aventuroso demais. 

A partir da noite da reintegração, eu sabia que precisava me aventurar. Uns dois dias depois, eu percebi que esse processo de lidar com esse luto seria diferente de todas as minhas outras dores. Eu precisava ser muito sincera comigo, olhar com muita atenção pra dentro e principalmente, para enxergar exatamente o que eu queria e ansiava por naquele momento. 

Nem sempre é tão fácil assim saber exatamente o que a gente quer, mas eu sabia o que eu não queria e isso era um bom começo. Eu não queria fingir que eu estava bem e que estava feliz, eu não queria fingir que não ia para cama chorando todas as noites há 8 meses, eu não queria uma festa, eu não queria um bolo de 30 anos, eu não queria fingir que eu não gasto muito mais do que gostaria em terapia, porque eu sigo tentando assimilar o impacto de ter estado numa relação que foi uma junção de midsommer, com ilhados com a sogra e tudo aquilo que você vê de horroroso em vídeos do tiktok falando de homens com mães narcisistas. 

Aprender sobre o tempo é um dos grandes desafios da minha vida, acho que da nossa geração com esse ritmo frenético e ensimesmado. Tem que ter paciência e respeitar o tempo, que é realmente a única prova sólida da existência.

Nesse processo todo, eu entrei na natação. Comecei a nadar duas vezes na semana para limpar minha alma e esvaziar a cabeça enquanto embaixo da água praticando meu nado crawl. Depois de uma das aulas, no meu carro a caminho de casa, eu coloquei uma playlist aleatória para tocar. Já estacionando na minha garagem, Billy joel começa a cantar: slow down you crazy child, you're so ambitious for a juvenile. 

Vá devagar, sua criança doidinha, você é tão ambicioso para um jovem.

Já estacionada, eu soltei o cinto de seguranca e fiquei ali no banco do motorista ouvindo a música seguir: 


but then if you're so smart, tell me why are you still so afraid? 


Toda vez que eu ouço essa música, eu me sinto mais presente nesse mundo. Desacelerando mesmo, vivendo no aqui e agora. Para mim, o Billy Joel sabe tudo quanto canta Vienna. A gente pode até abrir aqui uma pesquisa para descobrir se é algo millennial, mas sinto que essa música tem um impacto muito grande nessa geração que cresceu ouvindo que poderia tudo antes mesmo dos 30. 

Quando você vai perceber que

When will you realize


Viena espera por você?

Vienna waits for you?

Pode ser a lua em câncer de novo, mas pra mim, aquilo foi um sinal: eu queria ter 30 em Viena, para lembrar que dá para ir devagar, não dá para ser tudo que se quer antes do seu tempo. 

Dia 09 de dezembro eu comprei as passagens, dia 13 de janeiro, eu embarquei sozinha para o meu primeiro destino da viagem dos 30 anos: Vienna. 

Eu estava muito nervosa ao chegar no aeroporto, mas parece que depois que eu despachei a mala e entrei na sala de embarque, não tinha como retornar, era só seguir o fluxo. Embarcar no avião e descobrir o que iria acontecer a partir dali. Minha psicanalista me disse que eu precisava lembrar que eu “cuido” das coisas para que elas deem certo, que eu tenho uma ação na direção delas para que elas funcionem e que eu deveria confiar em mim. Confiar que eu cuido. Esse é o segredo de viajar sozinha. 

Depois de voar 11h até Paris e pegar uma conexão de mais duas horinhas até Vienna, eu cheguei no apartamento que havia alugado bem pertinho do centro histórico da cidade. Eu lembro nitidamente da sensação de largar as malas no corredor, subir para o segundo andar, abrir a janela, sentir o ar gelado daquela noite e o alívio no peito de ter ido tão longe sozinha. Ir para Vienna era um presente material, um gasto expressivo muito incrível que pude me proporcionar naquele momento. Mas o presente mesmo, a maior alegria mesmo, foi a oportunidade que eu me dei de me aventurar de novo, de ser feliz de novo, de respirar ali naquela janela e sentir um alívio no peito de novo. 

Eu acordei no dia seguinte, coloquei camadas e mais camadas de roupa, fui conhecer os arredores do meu apartamento. Eu sorria feito boba andando pelas ruas, observando os prédios e o cotidiano da cidade. Além de achar tudo muito lindo, eu achei tudo muito acolhedor e Vienna me convidou a pensar sobre a vida assim. 

Algumas horas depois com um café na mão eu decidi que iria para o museu do Freud. Eu faço sessões de psicanálise semanalmente há quatro anos, eu sou muito grata por ter acesso a isso, pois vejo o quanto elas são fundamentais para que eu tenha mais qualidade de vida, para que desenvolva mais confiança em mim e nos meus sentimentos, sem falar que eu provavelmente nem estaria ali, naquela viagem, se não fosse a terapia agindo sobre minha vida. Então claro - Freud é uma presença recorrente por aqui - e saber mais sobre como ele viveu e onde desenvolveu a maior parte da sua teoria psicanalítica era um sonho.

No dia do meu aniversário, eu fiz só coisas que eu considerava muito especiais e muito a ver comigo. Tomei café num lugar que estava animadíssima para conhecer e salvei para esse dia, um lugar chamado The Chow. Comi uma pastry divina recheada com creme de avelã, que tava perfeita. Comprei vinis que são meu hobby, minha paixão, uma das coisas que eu mais gosto de fazer, sabe? E entre as compras, teve um vinil mega especial que amarrou a viagem como um todo: eu comprei o vinil the stranger do billy joel, que conta com a faixa Vienna que me inspirou a ir até lá. Romantizei minha vida no nível máximo nesse dia e claro, eu também visitei um museu que queria muito conhecer: O belvedere, casa da maior coleção de obras do Gustav Klimt. 

No final do século 19, Vienna que era uma cidade muito conservadora, começou a ser transformada, um grupo de artistas, arquitetos, músicos e cientistas sociais estavam experimentando novas formas de se viver e sentir a vida que iriam transformar seus campos de atuação. Vienna, até então, era a cidade da arte acadêmica, mas naquele momento, também era casa para artistas radicais da época, como Gustav Klimt. O design imperial arquitetônico estava sendo transformado, a música tocada pelo Gustav Mahler também chegou para embalar mudanças e Sigmund Freud estava prestes a transformar para sempre a forma como a gente analisa a mente humana. Vienna, vivia uma nova era, uma golden age. 

Gustav Klimt é um pintor conhecido mundialmente, mas se sabe pouco de sua vida pessoal, com exceção de que nunca se casou, teve várias amantes e provavelmente teve 14 filhos com mulheres diferentes. Ele viveu com a sua mãe a vida toda e tinha um medo imenso de doenças mentais. Pode-se dizer que o Klimt seria um caso bem interessante para o estudo do pai da psicanálise, o Freud. Assim como Freud, o Klimt posicionou a sexualidade como um ponto central de seu trabalho. Ele não foi para uma escola de arte mais tradicional, mas foi estudar artes e artesanato em um formato de educação prático, e foi assim que ele desenvolveu seus talentos e técnicas. O objetivo da vida dele era acabar com essa percepção de que existe uma arte superior às outras, principalmente quando falamos de artesanato. 

Ele havia recebido reconhecimento e apoio para seguir sua carreira como pintor desde cedo, ganhando uma bolsa de estudos aos 14 anos, focando em seu talento, suas alegorias e simbolismos. Ele investiu seu tempo também em pinturas decorativas arquitetônicas, pintando escadarias, tetos e murais. 

E Toda vez que a gente pensa sobre o Klimt e seus trabalhos mais famosos, bom, pelo menos eu, me vem essa sensação superficial de luxo, de amor, de prazeres, mas seguida pela sensação secundária de: mas será que é realmente isso? Ironicamente, a pintura que pode ser considerada uma das mais românticas do mundo, foi feita por um homem que tinha medo de relações românticas, de intimidade, de comprometimento e ia para casa todas as noites para se juntar à mãe que ele adorava mais do que tudo. 

Se sabe que Klimt manteve uma relação muito longa com Emilie Flöge, que deu vida a uma das principais casas de moda de Viena por muitos anos. O negócio chegou a empregar cerca de 80 assistentes. Emilie foi uma das estilistas que difundiu, entre outras coisas, o chamado estilo reformista. O pintor e Emilie formaram um forte vínculo, mas ninguém sabe exatamente qual a natureza dessa relação: se na privacidade de suas casas, tinha uma natureza sexual e romântica ou se era uma amizade muito profunda, um senso de parceria muito grande. Eles nunca se casaram, nunca moraram juntos, não tiveram filhos. Klimt manteve relações paralelas com outras mulheres, mas era com Emilie que comparecia aos eventos sociais e inclusive, parte da sua herança ficou com ela. Ambos viviam em um processo de cocriação, tornaram-se representantes do novo homem e mulher libertos de Vienna, dedicados a encontrar novas formas e ideias para varrer a rigidez e o conservadorismo do século anterior. Essa relação coloca até a gente aqui em 2025 a pensar sobre os formatos de relacionamentos e suas questões bem atuais. Mas enfim, apesar de divagar sobre a relação deles, ela não é clara. O certo é que durou vinte e sete anos.

Existem teorias que acreditam que O Beijo é um auto retrato de Klimt e Emilie. 

Bom, estava eu ali, no museu Belvedere em Vienna, cercada por obras do Gustav Klimt. 

Tem uma série de coisas que fazem dessa pintura única, desde os corpos pintados de uma forma muito ligada a uma sensualidade contemporânea, até a similaridade da pose com um sarcofago de uma mumia egípcia. Tudo parece flutuar num cosmos dourado, como se estivesse fora de uma linha de espaço e tempo, feito com folhas de ouro, técnica esta, desenvolvida pelo Klimt. A pintura é grande, então faz com que você se conecte com ela numa percepção muito humanizada, muito realista. 

O museu estava cheio nesse dia, aguardei alguns minutos para chegar mais perto e ver as nuances e texturas. 

Num olhar mais técnico, o Klimt cobriu a tela inteira com folhas de ouro e pintou por cima delas. Ele usou 8 tipos diferentes de ouro em O Beijo e trouxe também texturas tridimensionais por baixo das aplicações, fazendo com que elas trabalhassem melhor a luz, assim como os murais bizantinos que Klimt estudou e buscou inspiração. Não se sabe exatamente quanto ouro tem na pintura, mas de fato, é mais do que a gente imagina num primeiro momento. 

Para entender o beijo, a gente precisa entender um pouco sobre a vida e obra do artista antes dessa pintura ter nascido. Num de seus primeiros trabalhos onde ele trata desse tema, do contato entre duas pessoas de uma forma romântica, há um casal quase se beijando no quadro. Klimt, que evitava qualquer tipo de relação romântica, coloca na pintura, acima das cabeças desse casal, três faces simbólicas flutuando em um fundo enevoado: a morte, a doença e a velhice. É como se ele quisesse dizer para gente que paixão é algo carregado das incertezas da vida, um território perigoso de se andar. 

Apesar da gente ver muita paixão na pintura de O Beijo, quando percebemos esse background complicado do pintor em relação ao amor,  a gente percebe que esses sentimentos conflituosos se fazem presentes aqui também. Apesar do casal de O Beijo estar posicionado em um campo verde salpicado de flores coloridas, esse mesmo campo encontra seu fim e estão à beira de um precipício. 

Outro detalhe que hoje pode passar despercebido pelos nossos olhos é que há uma sugestão de que o casal de O Beijo está usando apenas uma espécie de túnica, algo de certo modo leve, fluido, quase podendo escorregar pelos ombros. Há uma naturalidade em ver essa vestimenta hoje, mas quando a pintura foi apresentada ao público pela primeira vez, gerou espanto, justamente pela vestimenta e comportamento muito mais conservadores da sociedade de Vienna. Quando paramos para pensar quais eram as roupas consideradas adequadas para época, é possível compreender de onde vem tanto espanto. As roupas também são metáforas visuais para as emoções físicas e eróticas do amor como um todo. A roupa do homem é coberta por retângulos eretos, um símbolo de masculinidade, enquanto a roupa da mulher é composta por redemoinhos, espirais, círculos, representando o óvulo e a feminilidade. 

As coroas na cabeça de ambos trazem um visual pagão bem distinto, quase como se tivessem completado um tipo de ritual. Ele, com uma coroa de heras e ela com uma coroa de flores. Uma das teorias, sugere que o Klimt estava representando o mito de Apollo e Daphne, onde Daphne foge de Apollo e pede aos deuses para que a transformem em uma árvore de louro, para se proteger dos avanços de Apollo e para não ser beijada pelo mesmo. 

Ainda na sequência desse mito, fala-se especificamente de um beijo que ocorre após Daphne ser transformada em uma árvore, nem quando a mulher vira um tronco enraizado, ela é deixada em paz, né? Existem poucas representações desse trecho do mito em si, mas é bem visual imaginar um corpo feminino criando raízes no chão, a pele dura com textura e visual de um tronco de madeira, os braços levantados onde crescem galhos e folhas. Quando voltamos para o beijo de Klimt, é possível perceber que as pernas da mulher parece estar afundando no chão, criando raízes douradas, com elos de folhas de louro, emanando do corpo dela em direção a esse solo, caindo lentamente até mesmo pelo precipício, assim como a árvore que Daphne pediu para ser transformada.

Como os olhos fechados, quase em um transe, a mulher de O Beijo tem um braço em torno do pescoço do homem enquanto a outra mão posiciona-se gentilmente sobre a mão do homem. O rosto inclinado, mas fica o mistério, é para receber o beijo na bochecha com afeto ou é uma tentativa para afastá-lo dos lábios? Acho que essa pode ser uma das grandes questões de O Beijo, pois não se sabe qual a relação entre esse casal na tela. É romântica? Há uma ternura, uma aceitação ali, mas será que ela quer ser beijada ou virar o rosto para não ser beijada nos lábios? Por que ela se ajoelha para receber o beijo? 

Será que a pintura mais romântica da história, na verdade, representa uma relação platônica onde só um ama? 

Olha, eu confesso para você que parada na frente de O Beijo de Klimt em Vienna, lidando com o luto do término de um relacionamento, processando todas as informações que eu tinha sobre o pintor, sua história e ao mesmo tempo o mar de emoções que brotam ao ver essa pintura, eu só conseguia pensar sobre como Klimt viveu a vida inteira com a mãe. 

Sim, essa era basicamente a rotina de Klimt. Com o falecimento do pai e do irmão mais novo, ele foi a figura masculina da casa e confesso que como se sabe pouco sobre sua vida pessoal, eu fico aqui fazendo suposições: será que Klimt nunca se casou porque era aquele filho/marido da mãe? 

Uns dias antes, lembra que eu fui no Museu do Freud? Então, o pai da psicanálise estava ali na minha mente falando “ih, um típico caso de complexo de édipo”. 

Basicamente, o Freud tirou o complexo de édipo de uma peça de teatro chamada Édipo Rei, de Sófocles. É uma dessas tragédias gregas escrita há centenas de anos antes de Cristo, onde havia uma profecia que Édipo iria matar seu pai e se casar com sua mãe. No resumo de tudo, Édipo ainda muito cedo saiu de seu reino e no decorrer de sua vida, ele entra em uma briga que acaba por levá-lo, sem saber, a matar seu pai e casar-se com a esposa desse homem, então sua própria mãe. 

O complexo de Édipo é algo que toda criança enfrenta. Ele tem a dizer sobre as descobertas desse processo e as diferenças entre as experiências. É uma fase onde a nossa primeira experiência de paixão da vida se dá em direção a um de nossos genitores ou tutor presente. É quando experimentamos inclusive, essa briga de quem ama mais quem, ou de “a mamãe é minha ou o papai é meu”. Passar por esse compelxo, é passar pelo momento em que a gente internalisa que a gente não pode namorar com nossos pais, a gente internaliza a regra do incesto. É muito importante ter pais que sabem apresentar limites constitutivos para o desenvolvimento dessa criança, como por exemplo, explicar que a mãe não pode casar com o filho, pois é casada com o pai, que quando o filho ou filha dorme com o pai e mãe, não tem o mesmo caráter, sabe? Existem certas similaridades causadas pela convivência das famílias, um adulto andando de mão dada com criança vem de um lugar de proteção, de cuidado com a criança para que ela não se coloque em perigo em situações que não consegue ter um discernimento ainda. Mas isso muda completamente quando vemos um casal envolvido romanticamente andando de mãos dadas. O gesto físico é muito similar, mas tem contextos completamente diferentes e é necessário que os pais apresentem essas diferenças aos filhos, que basicamente os tornem excluídos dessa relação do casal para que eles consigam passar pelo complexo de édipo e superar essa fase. 

No livro "A gente mira no amor e acerta na solidão” da Ana Suy, ela faz uma matemática dessa fase da vida: o fato dessa teoria se dar a partir da existência de três pessoas. O complexo de édipo é substancialmente uma relação em que a gente aprende a perder. 

É quando os pais, com sucesso, nos excluem da relação deles e mostram que a gente sobra e que é preciso ir construir a nossa própria vida a partir de nossas vontades. É quando nossos pais também têm a oportunidade de tirar um peso das nossas costas, a responsabilidade pela sua felicidade.

Citando a Ana Suy aqui, “quando uma criança se sente responsável pela felicidade da mãe, pela felicidade do pai, ela se mantém sexualmente ligada a eles, às vezes pela vida toda, sem poder se afastar (no sentido emocional) para cuidar da sua própria vida.”

E por que eu to falando sobre isso? Bom, era o que eu estava pensando quando vi O Beijo, risos! Estava pensando se o Klimt é um complexo de Édipo mal resolvido, assim como tantos homens que a gente se depara na atualidade, que tem como alguns sintomas alguns comportamentos internalizados para vida adulta, depender emocionalmente da mãe, buscando nela o conforto e a segurança. Homens com dificuldades em formar e manter relacionamentos românticos saudáveis, com um ciúme da mãe em relação à parceira, ou rivalidade. 

Sabe que mais pode ser um complexo de édipo mal resolvido? A proximidade excessiva com a mãe, tipo falar diariamente por telefone, admirar a mãe exageradamente, como se fosse um ser incapaz de ter defeitos e errar, colocar essa figura como prioridade na frente de tudo. Qualquer semelhança com um termino meu aí, casualmente o que eu estava de luto por, é mera coincidência.

Tudo isso Freud explica, meninas. Porém, jamais vamos autodiagnosticar alguém através de um podcast e essa moça neurótica aqui que vos fala. Procure uma psicoterapia, um psicanalista bom. Um analista tem o poder de inevitavelmente nos levar a conhecer quem realmente somos. Mas assim, Freud também explica que a realidade determinante para nós sempre a realidade psíquica. Ou seja, não é tanto o que acontece o que mais importa, mas muito especialmente, como o que acontece nos chega. Em outras palavras, se você sentiu e acredita nisso, é a sua realidade. Mas é bom fazer terapia, tá? 

Eu vou deixar só mais um pensamento intrusivo meu entrar pra esse papo: juro que eu me pego pensando com muita frequência como seria se o Freud estivesse vivo hoje para assistir um reality como Ilhados com a Sogra? Ainda mais a segunda temporada! 

Eu gosto de encontrar respostas e motivos para as coisas, me faz sentir mais segura, mas uma tarefa importante da vida é a gente aprender a seguir em frente sem saber de tudo que gostaria. Amar é ação, é trabalho e nem todo mundo tá disposto a isso. Que as vezes, mais sempre do que só as vezes, o amor acaba, a gente perde o amor e às vezes, a gente perde alguém e não perde o amor. Por isso, o luto vai acontecendo e o afeto às vezes diminui, às vezes aumenta de tamanho. Não tem certo, não tem errado, não tem prazo, não tem tempo, não tem fórmula, mas pela minha experiência, tem sempre o novo: uma viagem nova, uma descoberta nova, um olhar novo. 

O novo vai cavando esse lugar na gente, vai fazendo mais espaço, vai tirando a atenção do que acabou. Por si só, o novo não é a única coisa capaz de ajudar em um processo de luto de término de relacionamento, mas definitivamente, ele é um caminho que ajuda a conviver com ele.

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