Robinson Crusoé

Em fevereiro de 2022, eu embarquei no que eu considero uma das aventuras mais inusitadas e inesquecíveis da minha vida até aqui e provavelmente, da minha vida como um todo. Eu me juntei a um grupo para realizar um trabalho voluntário numa das ilhas mais remotas do mundo, no meio do Oceano Pacífico: a Ilha de Robinson Crusoé. 

Eram mais ou menos 10 pessoas de nacionalidades diferentes vindas do mundo inteiro com o objetivo de dedicar seu tempo e suas habilidades para a comunidade da ilha. 

Eu me preparei de diversas formas, estudando muito, comprando botas de trilha impermeáveis, equipamentos para o frio e também lendo o romance de Daniel Dafoe que leva o nome de Robinson Crusoé. 

Nem sabia que isso não me prepararia para a aventura que eu viveria.

A experiência toda foi muito impactante, pois foi pós pandemia onde ainda haviam muitos protocolos de segurança a serem seguidos, como isolamento por 7 dias dentro de um quarto de hotel assim que chegasse ao Chile. Dá para pensar que esses dias foram uma delícia, imagina só: serviço de quarto, muitos filmes, uma vista bonita. Dá pra ficar isolado assim tranquilo, né? Mas esse isolamento, era mais um isolamento dentro dessa pandemia. Era mais um afastamento de contato humano, de trocas e experiências. 

Eu também lembro de me sentir muito assustada para fazer o trajeto entre o continente e a ilha, pois era num avião super pequeno e o voo chegou a ser cancelado alguns dias por condições climáticas extremas. O Pacífico não é fácil e a ilha é realmente longe do continente, tão isolada, que servia de apoio para navios que se aproveitavam das correntes do oceano para navegação há centenas de anos. Inclusive, é assim que essa ilha e o romance de Defoe se encontram:

Três séculos atrás, um marinheiro escocês conhecido como Alexander Selkirk estava definhando no Oceano Pacífico, próximo a costa do Chile, em um navio britânico chamado Cinque Ports quando começou a discutir com o capitão que o navio era uma furada, estava cheio de doenças e era uma armadilha mortal. A tripulação doente do navio eram, na verdade, piratas legalizados para a Coroa Britânica — que passaram um ano no mar na América do Sul roubando navios espanhóis e vilas costeiras. Mas em outubro de 1704, quando o Cinque Ports ancorou em um arquipélago deserto a oeste de Valparaíso, no Chile, o Selkirk foi, digamos assim, convidado a se retirar do navio e não seguir viagem com a tripulação, já que ele era um reclamão. 

Selkirk aceitou seu destino e manejou sobreviver sozinho nessa ilha a mais de 700 km do continente por quatro anos e quatro meses. 

Sozinho. Uma ilha, um homem, uma plantação de rabanetes e cabras vivendo soltas. Na época, o arquipélago era utilizado por vários navios como uma parada estratégica para reabastecer o navio com carne fresca e alimentar os tripulantes com alimentos ricos em vitamina C, para curar o escorbuto, doença muito comum por acometer quem estivesse embarcado, e por isso os rabanetes. 

A vila de San Juan Bautista tem hoje uma população aproximada de 900 pessoas e ela teve início em 1750 pelos espanhóis, ainda é a única comunidade na ilha e está espalhada ao longo de uma baía em formato de meia-lua na base de uma montanha de 1500 metros que se torna uma floresta tropical em seu topo. 

Quando olhamos para a ilha hoje vemos estradas de terra, cabanas de verão e operações básicas para quem visita esse lugar, algumas dezenas de turistas em estações específicas do ano. Existem lojas de conveniência que ocupam cômodos das próprias casas dos moradores da ilha, três igrejas, um ginásio, uma escola, uma prefeitura, um pequeno museu e uma biblioteca. 

As casas são, na maior parte, de madeira, limpas e aconchegantes, com pequenos quintais com galinhas, canteiros de ervas e flores e grandes palmeiras frondosas ou algumas árvores frutíferas. Algumas casas têm barcos antigos estacionados em seus quintais, já que uma das maiores atividades econômicas da ilha é a pesca, principalmente da famosa lagosta de Robinson Crusoé, espécie endêmica daquelas águas. 

Não há pobreza visível nem riqueza gritante, com apenas duas dúzias de carros em toda a ilha, que mede cerca de 18km, todo mundo se conhece e todo mundo se cumprimenta nas ruas. 

Mas a ilha era um lugar um pouco diferente quando Selkirk a ocupou séculos atrás. 

Em uma manhã nublada, em grupo, subimos até o "mirante" de Selkirk, uma caminhada de pouco menos de 4km subindo 500m acima de San Juan Bautista por uma trilha lamacenta. Chegando ao destino, é perceptível uma formação retangular com pedras alinhadas na parte mais plana da montanha e cercada por algumas árvores médias, poucas folhas e madeira retorcida. O vento diminui aqui, é quase como um refúgio, as árvores têm frutas vermelhas ácidas que provavelmente fizeram parte da alimentação de Selkirk nos quatro anos de solidão em que imagina-se que mirava o oceano esperando algum navio amigo aparecer. 

Quando o céu abriu um pouco, eu entendi por que ele escolheu exatamente este lugar para fazer seu abrigo. Ele não só conseguia ver por quilômetros em todas as direções, dando a si mesmo uma ou duas horas de vantagem se precisasse escapar dos espanhóis — que torturavam e escravizavam os seus prisioneiros — mas também conseguia ter uma vista linda do oceano, uma paz solene. 

E é inegável, a ilha de Robinson Crusoé conserva essa paz e a vista de tirar o fôlego até os dias de hoje. O lugar é uma das coisas mais impressionantes do planeta.

Bom, quatro anos depois, o Selkirk foi resgatado por um navio inglês e ao retornar à Inglaterra, Daniel Defoe ficou intrigado com a história de Selkirk que passou a ser contada de bar em bar. Historiadores debateram se ele e Selkirk realmente se conheceram, mas Defoe com toda certeza se impactou com sua história e a uniu a outras experiências narradas na época de sobreviventes de ilhas desertas para criar o que se tornaria a sensação literária de Defoe: um dos maiores contos de autoconfiança e coragem do mundo, Robinson Crusoé, de Daniel Defoe faz do clichê algo singular: a verdade é mais estranha que a ficção. 

Mas, apesar de ficar muito impressionada com toda essa história de Selkirk e principalmente impressionada com o voo de 2 horas saindo de Valparaíso no Chile em um bimotor antigo para 6 pessoas com caixas empilhadas logo atrás do meu assento e uma visão bem ampla do painel dos dois pilotos, nada me impactou tanto como conhecer Raimundo e tudo o que ele me apresentou sobre a vida. 

Raimundo vive na ilha há mais anos do que eu tenho de vida. Com cabelos brancos e mãos longas e finas, ele me convidou a conhecer sua vida, sua rotina e seu legado. A casa de Raimundo tem uma das arquiteturas mais impressionantes de Robinson Crusoé, reunindo elementos naturais e formas assimétricas, têm grandes janelas de vidro, uma vista impressionante para o mar, inúmeras pinturas e objetos artísticos espalhados quase descuidadamente pelo local. O aconchego da casa e a boa conversa do morador, são convites para ficar. Raimundo reúne em suas paredes pinturas de artistas chilenos e obras relacionadas ao movimento cultural chileno que permeiam histórias de Robinson Crusoé. Seu acervo inclui uma reprodução de uma pintura de um navio espanhol, o San Telmo, que desapareceu em 1822, com o trágico destino dos 644 oficiais, soldados e marinheiros que se tornaram as primeiras pessoas a morrer na Antártida; partes dos escombros do navio foram encontradas meses depois pelos primeiros caçadores de focas a chegar à Ilha Livingston. Certamente, se alguém de San Telmo tivesse sobrevivido e encontrado comida lá, teria sido o primeiro homem na história a chegar à Antártida.

Nas paredes de Raimundo também é possível encontrar reproduções numeradas de Bororo, que pertencem à chamada Cena Avançada ou Geração dos anos 80, que se caracterizam pela intenção de resgatar a pintura, o gesto e o caráter lúdico da arte, perdidos em anos anteriores. As obras muito gestuais, com pinceladas intuitivas, gotas expressivas e manchas diretas, são expostas de forma muito prestigiada no acervo de Raimundo. A potência da cor e o desenho elementar, de um grafismo muito simples, quase infantil, compõem um universo que transita entre o abstrato e o figurativo. A intensidade e a paixão do artista deságuam em uma subjetividade que molda diferentes dimensões e perspectivas na tela, sendo o azul a cor predominante e também muito fiel ao tom de azul marinho de Robinson Crusoé. Bororo visitou o arquipélago no passado com outros artistas para buscar inspiração em sua geografia, cultura e história.

Raimundo foi essa ponte entre a ilha, sua arte, sua cultura e suas pessoas. Me ensinou a melhor receita de lagosta com batatas e recomendou vinhos excepcionais. Ele me contou sobre como gostava de comer os ouriços colhidos nas praias e que agora eram encontrados aos montes depois que o tsunami de 2010 varreu a costa e os trouxe consigo nas ondas gigantes. Ele me contou histórias de pessoas queridas que foram levadas pelas mesmas, assim como praticamente tudo que foi de Blanca Luz Brum, nome que eu gravei na memória desde a primeira vez que ouvi: a mulher que ficou conhecida na ilha por andar nua nas pedras em frente a sua casa há anos. Raimundo a descrevia como uma figura peculiar, muito destemida, e mesmo em meio a pequenos escândalos cabeludos, era claro o respeito que ele tinha para o que Blanca Luz Brum significava. 

Eu me lembro de me sentir o mais tranquila que já fui na vida quando entrava na casa de Raimundo. A casa dele servia realmente como um refúgio para mim, era um contato com arte, cultura, com esse acolhimento de uma amizade que surgiu e que tirava a cabeça de outra situação que acontecia paralelamente em minha vida: nessa altura da viagem, eu já estava há mais de três semanas em Robinson Crusoé e estava vivendo uma situação que me desestabilizou bastante internamente. Na época, eu estava em um relacionamento que era muito tranquilo, muito harmonioso. Foi um relacionamento que se fortaleceu na pandemia, por isso, passamos bastante tempo juntos, praticamente compartilhando o cotidiano. A vida seguia esse rumo com bastante tranquilidade, até eu embarcar sozinha pela primeira vez para uma viagem que dizia respeito ao meu trabalho e a minha pessoa, aos meus sonhos e aspirações, a me fazer útil para algo além do meu relacionamento. 

Já no Chile, falávamos todos os dias em um horário marcado, e eu não consigo lembrar exatamente quando a primeira acusação por telefone surgiu, porque agora, anos depois, parece que elas sempre estavam lá. Esse ex namorado, passou a todos os dias, me fazer jurar no telefone que eu não o trairia enquanto estivesse na ilha. Acho que no início, eu fiquei impactada e confusa com tal pedido, eu sabia que ele tinha questões de autoestima, mas as coisas simplesmente não encaixam na minha cabeça: por que isso? Porque agora? Porque ele tá pensando nisso enquanto eu estou aqui falando de desenvolvimento das minhas habilidades, de paisagens incríveis, de superar meus medos, de contribuir para um projeto que vai além das minhas aspirações de vida? Como chegamos nesse ponto?

Eu não dei motivo algum para que ele se sentisse dessa forma e disso eu tinha certeza.

Conforme os dias foram passando, esses pedidos para que eu não quebrasse o acordo que tínhamos em nosso relacionamento evoluíram para acusações. Ele tinha certeza absoluta que eu o havia traído com alguém. Não havia nada que eu pudesse falar que o faria mudar de ideia, que o faria perceber que era um absurdo aquela acusação. E a cada dia, essa ligação ficava mais pesada para mim, pois imagine como é desgastante ouvir por 40 minutos alguém ter certeza de que você fez uma coisa ruim, te acusando disso, falando coisas horríveis, quando não havia argumento algum que você pudesse oferecer para provar sua lealdade. Ainda mais, quando tudo que você estava precisando era acolhimento. Essas ligações acabaram com meu psicológico. 

Eu sinto que passei por um luto desse relacionamento nessa ilha que eu não precisava ter vivido naquele momento, uma confusão mental que eu não deveria ter naquele momento, afinal de contas, eu estava ali! Eu saí de uma cidade pequenina com o sonho de viver coisas espetaculares e aquele trabalho, aquela aventura, aquilo era espetacular pra mim. 

Em uma sessão de terapia, sim, minha psicanalista diva - sem ela não estaria aqui - decidi que comunicaria meu então namorado de que eu não atenderia mais as suas ligações, de que elas estavam me abalando demais e que quando retornasse ao Brasil em algumas semanas, poderíamos conversar pessoalmente. 

E assim foi feito.

Numa tarde de chuva, eu atravessei o vilarejo em direção a casa de Raimundo. Meu lodge ficava há menos de 1km da casa dele e fui a pé, mesmo na chuva. Usar guarda-chuva não era muito sábio, os ventos na ilha sempre foram furiosos, então a capa de chuva teve que dar conta do aguaceiro. Chegando lá, deixei os sapatos na entrada da porta, me encostei no sofá com o interior da casa aquecido e pedi que me contasse mais sobre essa figura peculiar, sobre essa mulher que andava pelas pedras nua, criava situações desconfortáveis e que diziam que destruiu toda paz que a ilha já teve: Blanca Luz Brum. 

Na minha cabeça, Taylor Swift adoraria participar dessa conversa e cantar essa história assim como a de Rebeka Harkness: as mulheres mais desavergonhadas que essa cidades já viram e que tiveram um tempo maravilhoso arruinando tudo! 

A reação de Raimundo foi a melhor possível: ele se levantou, foi até um armário de madeira, abriu as portas e retirou um projetor. Me disse: llamé a todos, hoy vamos a ver una película. Tava eu lá, num domingo à tarde chuvoso, chamando todo mundo para assistir um documentário em espanhol, sendo que a maior parte dos voluntários do projeto, não falava espanhol, falava inglês, italiano e francês. Até nesse ponto da viagem, eu estava sendo a tradutora de muita coisa. 

Raimundo abriu uma garrafa de vinho enquanto esperávamos os poucos que toparam esse programa e me perguntou se eu já havia visto a filha de Blanca Luz aqui na ilha, se eu sabia que ela morava lá. Eu disse que não e ele me disse que após assistirmos ao documentário, eu poderia avisá-lo se queria almoçar com ela e ele agendaria tudo. Mas só eu. 

Os poucos chegam, Raimundo encaixa um pendrive em seu laptop e seleciona o arquivo. Sim, um pendrive. Lembra do trabalho voluntário? Ele tinha como um dos seus objetivos, oferecer internet rápida por satélite na ilha, assim como instalação de computadores públicos, mas os pontos de internet ainda não haviam chegado na casa de Raimundo, então em pleno 2022 eu vivi uma situação em que se quisesse assistir um filme específico era na fita cassete, no dvd ou no pendrive. 

Projetado no telão branco, leio o nome do arquivo: No Viajare Escondida: El mito de Blanca Luz Brum. 

O documentário lançado em 14 de março de 2018 com direção de Pablo Zubizarreta começa a ser exibido. 

Como já disse anteriormente, a verdade é mais estranha que a ficção. Blanca Luz Brum, é uma mulher, é um mito, é parte crucial da história dos lugares pelos quais passou: Peru, Chile, México, Argentina, principalmente a Argentina e ah, a história da Argentina está cheia de mitos. 

Blanca Luz Brum nasceu em 5 de maio de 1905 em Pan de Azucar, no Uruguai. Se você já viajou de carro pelo Uruguai, o Pan de Azucar é uma cidadezinha no sudoeste do Departamento de Maldonado, no Uruguai, que leva esse nome por conta de uma colina próxima. É a terceira elevação mais alta do Uruguai com 423 metros de altitude e, por exemplo, se você vem de Montevideo em direção a Punta del Este, você vê essa colina da estrada, quase que impossível de não perceber, pois a paisagem é completamente plana, com exceção desse cerro com uma cruz eminente no topo. 

O que se sabe sobre Blanca é impressionante: ela escreveu poesia de vanguarda na década de 20, escreveu artigos para revistas importantes e editou seu próprio jornal: Guerrilla: Atalaya de la Revolución. Alguns de seus trabalhos, como o poema Himno, são hoje vistos como ecofeminismo muito precoce. Ela era pintora, inspirada por sua poesia e ativismo político, sendo um modelo para as mulheres na arte e na política revolucionárias.

Blanca se casou 5 vezes num período onde não existia o divorcio. 

Foi presa em três países diferentes. 

Foi deportada de outros quatro. 

Foi revolucionária e dona de casa. 

Aventureira e fora da lei. 

Foi mãe de quatro filhos e atravessou a América Latina.


Mas grande parte da contribuição artística e política de Blanca sofreu um processo de apagamento.

A Blanca, foi uma das principais organizadoras do importante 17 de outubro, data celebrada na Argentina por ser considerado o nascimento do peronismo, bem como um dos momentos mais importantes da história do movimento operário argentino, pois marcou a constituição da classe operária como protagonista da história do país. Nesse dia em 1945, trabalhadores se organizaram para exigir sua libertação, quando o presidente da época da Argentina, Edelmiro Farrell, preocupado com o poder acumulado por Perón, ordenou sua prisão.

Pouco tempo depois, Perón saiu da prisão, e nas eleições democráticas de 46, foi eleito presidente por quase 54% dos argentinos. Ele iniciava um período de dois mandatos consecutivos, que seria interrompido pelo terceiro golpe de Estado sofrido no país em 1955 resultando numa proibição do peronismo, o que levou seu líder a se exilar por 18 anos. Esse longo intervalo só chegaria ao fim em 73, com o regresso do Perón à Argentina, onde com 78 anos e se tornaria então o único presidente argentino a assumir o cargo por 3 vezes, sendo que este último, foi interrompido pela sua morte depois de apenas oito meses de mandato.

Bom, 2 anos anos antes do 17 de outubro de 1945, em Buenos Aires, Blanca Luz tomava um lugar ao lado de Perón muito antes da chegada de Evita. Blanca e Perón tinham um relacionamento muito próximo e inclusive acredita-se que eles podem ter sido amantes, embora não haja evidências concretas disso, mas existem muitas histórias. Blanca se tornou secretária de imprensa de Perón e ao escrever sobre essa fase de sua vida, ela afirmou ter sido a ideóloga do 17 de outubro de 1945 e a criadora do slogan “Braden o Perón”, que tomou as ruas do país durante décadas. 

E como eu disse, muitas histórias. Dentre elas, a de que Evita, esposa de Perón, deu 48 horas para Blanca Luz Brum sair do país assim que seu marido assumiu a presidência em 46, coisa que Blanca fez e levanta mais ainda as suspeitas do envolvimento romântico dela com Perón.

O possível caso entre eles, é um dos envolvimentos românticos de Blanca que intriga as pessoas, mas sua história de relacionamentos na vida é no mínimo curiosa, podendo-se dizer que as mentes mais brilhantes da américa latina se apaixonaram por ela: o seu primeiro marido foi o poeta peruano Juan Parra del Riego que a ajudou fugir de um convento onde ela morava aos 16 anos e eles se casaram na sequência num ato de uma paixão avassaladora que teve como frutos uma série de poemas, o primeiro filho de Blanca e provavelmente seu primeiro grande luto: Parra estava doente de tuberculose. 

​Otros se casan para vivir, nosotros nos casamos para morir”, costumava dizer o poeta. 

E assim foi. Quatro anos depois, Parra morreu da doença. Blanca, que também escrevia poesia, partiu para o Peru para que seu filho conhecesse a família paterna. 

Já no Peru a poetisa uruguaia é convidada para muitos encontros boêmios e encanta os intelectuais peruanos com sua beleza e inteligência. Blanca frequentava a casa de Mariátegui, fundador da revista Amauta, que contribuiu para o fortalecimento da educação emancipatória na América Latina. A casa de Mariátegui era um movimentado centro social, um viveiro de ideias alimentado por café e álcool, reunindo a vanguarda política e literária de Lima. Ali, Blanca declara-se socialista, começa a escrever artigos para a Amauta e edita sua própria publicação que incentiva a poesia inovadora e ligada à transformação social. É um tempo de ebulição no Peru, e Mariátegui fundou o Partido Comunista do Peru com base em sua revista. Mas pouco tempo depois, em uma noite de debate na casa dele mesmo, a polícia invadiu a propriedade e os prendeu pelas ideias revolucionárias. Os jornais do dia seguinte anunciaram o desmantelamento do que chamaram de conspiração comunista com uma nota especial avisando que entre os delinquentes, “Duas mulheres estão envolvidas”. A nota ocupava a primeira página do jornal El Comércio e com isso, o governo concede a deportação de Blanca Luz.

Em 1929, o Congresso Internacional de Sindicalistas foi realizado em Montevidéu. Entre as delegações presentes estava David Alfaro Siqueiros, o muralista mexicano e ativista comunista. Blanca Luz, já deportada do Peru, encontrou Siqueiros e foi amor à primeira vista, coisa de fogos de artifícios. No final das sessões do congresso, Siqueiros e Brum, apaixonados e inseparáveis decidiram partir para o México. Blanca levou seu filho com ela e se integrou facilmente ao círculo de Siqueiros, logo se tornou anfitriã dos encontros frequentados por Frida Kahlo, Diego Rivera, Tina Modotti e até mesmo pelo cineasta russo Sergei Eisenstein, que estava no país filmando Viva México. Blanca adotou as roupas típicas da região e historicamente, eles formam um casal muito marcante. 

Em 1933, durante uma visita a Montevidéu, Siqueiros foi convidado a atravessar a fronteira e ir a Buenos Aires para dar uma série de palestras. Seu nome era muito conhecido na capital portenha e tinha um grupo de seguidores como os escritores Carlos Mastronardi, Oliverio Girondo, Victoria Ocampo, Alfonsina Storni e artistas famosos como Xul Solar e Emilio Pettorutti. Blanca e Siqueiros ficam hospedados na casa de Natalio Botana. 

Botana também foi um homem um tanto peculiar, muito rico, dizem que gostava de esbanjar seu dinheiro jogando notas pro alto na redação do jornal do qual era fundador, o Critica. Como gostava de se cercar de escritores e poetas, firmou uma amizade com Siqueiros, e a ele fez uma proposta, pediu que pintasse um mural no porão de sua casa de campo em Don Torcuato. 

Siqueiros mergulha na criação do seu “Exército de Plástico”, que preenche esse porão com figuras azuladas inspiradas em Blanca Luz, uma obra muito distante do seu muralismo político característico, sendo considerada um ápice da arte latino-americana e que agora está exposta no Museu do Bicentenário, ao lado da Casa Rosada em Buenos Aires. 

Sim, esse é mais um detalhe interessantíssimo dessa história: além do mural ser uma homenagem a Blanca Luz e os sentimentos que Siqueiros alimentava pela relação de ambos, o trabalho desenvolvido pelo artista foi inovador e, após a morte de Natalio Botana em 1941, a fazenda foi progressivamente abandonada até finalmente, em maio de 1990, começaram os trabalhos de recuperação e extração do Mural que também foram inovadores e precisos. Demoliu-se parte da casa e se fez o desbaste da área até que uma seção fina contendo a camada pictórica – cerca de dez milímetros – fosse protegida interna e externamente por vários materiais. O conjunto, que mede mais de 5m de largura por quase 7m de comprimento e 3m de altura, foi dividido em seis partes e por meio de um novo sistema de suportes metálicos permite sua exposição itinerante, por isso, na sua visita a Buenos Aires, você pode adentrar o que um dia foi o teto do bar de Botana, onde todo o encantamento causado por Blanca Luz toma vida e cor.  

Pelas dimensões do mural, vocês podem imaginar que foram muitas horas de trabalho dedicadas pelo pintor e durante esses horários, a amizade entre Botana e Blanca se aprofunda, ela compartilhava noites com Pablo Neruda, Federico García Lorca e Botana, com quem começa a ter um caso e se apaixona por tal, a ponto de que Siqueiros teve que deixar Buenos Aires, mas Blanca resolve ficar com o amante. O caso é descoberto pela esposa de Botana e dizem que os gritos dessa briga foram ouvidos até nas fronteiras do país.

Se não bastasse esse romance com o Botana, Pablo Neruda escreveu sobre Blanca Luz em Confesso que Vivi e existem cartas documentando essa paixão tórrida que ele também desenvolveu por ela e que aconteceu simultaneamente com Botana. Há quem diga que ele estava bêbado de amor e inventou as histórias, há quem diga que são verdade, a própria Blanca Luz diz que são loucuras de Neruda, mas há inclusive um filme para falar sobre esse caso de amor composto por grandes nomes intelectuais da história chamado El mural, do diretor argentino Héctor Olivera lançado em 2010. 

Já em 1935, divorciada de Siqueiros, Blanca emigrou para o norte do Chile e casou-se com Jorge Béeche, um engenheiro. No final de 1938 nasceu sua filha María Eugenia e pouco tempo depois, Blanca volta para a Argentina e inicia uma de suas contribuições mais notórias para a história: a influência sobre Perón e a campanha política que o leva à presidência. 

No livro "Las mujeres de Perón", Araceli Bellota conta que quando Perón voltava de sua posse como presidente no Congresso, Blanca acompanhava a cena da sacada do jornal Democracia, na Avenida de Mayo. Atrás do carro presidencial havia outro carro no qual Evita viajava. Bellota afirma que Blanca Luz murmurou com uma certa amargura: “Eu quem deveria estar lá”. 

Com o ultimato que Blanca recebeu de Evita, deixou a Argentina mais uma vez e de volta ao Chile, Blanca se casou novamente com um empresário tendo mais um filho em 1948. Embora registros digam que nessa época ela tenha se transformado em uma senhora loira e burguesa, ela afirmou que continuou colaborando com Perón à distância.

A vida de Blanca também foi atravessada pela perda de dois filhos, em 1952, seu filho mais velho morreu em Lima em um acidente de carro.

Blanca, se retirou em Robinson Crusoé para viver esse luto e um ano depois publicou uma obra dedicada à memória de Eduardo, sobre a vida do Barão Rodt, responsável pela colonização da ilha de Juan Fernández. O Último Robinson é o título que ela dá, lembrando a famosa obra de Daniel Defoe. 

Alguns anos depois, outro episódio conhecido como a fuga da prisão do fim do mundo, atravessou a vida de Blanca Luz. O presidio, no Ushuaia, deteve líderes peronistas como Jorge Antonio, Héctor Cámpora, Guillermo Patricio Kelly, sendo esse último, sujeito a um pedido de extradição do governo e por isso, contam as histórias que Blanca não ficou parada e não hesita em apoiar a fuga do nacionalista e líder da Aliança Nacionalista Libertadora. A história, contada com maestria por Gabriel García Márquez, narra que Blanca, acompanhada de uma amiga, visita Kelly por várias semanas na prisão. Quando os guardas da prisão já estavam acostumados com as visitas periódicas da beldade uruguaia, agora loira, começaram a relaxar o controle, e Blanca não perdeu a oportunidade. Ela secretamente trouxe roupas femininas para Guillermo Kelly, e vestido de mulher, ele escapa da prisão. 

Se Guillermo Kelly também teve um caso com Blanca, ninguém poderá provar, mas o episódio termina com mais um divorcio de Blanca que agora, livre, toma a decisão de  ir viver a última etapa de sua vida na remota ilha de Robinson Crusoé, pela qual ela havia se apaixonado anos antes. Pela qual eu me apaixonei em 2022.

E aqui a gente entra num dos pontos mais contraditórios dessa mulher, que Raimundo veio a me explicar com uma pequena analogia que eu não esqueci até hoje: ilha, em espanhol é isla e isolamento em espanhol é aislamiento, o ato de ilhar-se.

Blanca Luz mudou-se para para Robinson Crusoé em seus últimos anos de vida e se dedicou a pintar, escrever e caminhar nua pelo campo. Dizia “Tudo aqui é antigo, como os vestígios dos primeiros dias do mundo.” 

Mas não é mais a mesma coisa. Nada resta desses ideais socialistas que construíram a história política e social dessa mulher. Muito pelo contrário. Se torna uma anticomunista fanática e católica fervorosa, tanto que, em 1973, quando ocorreu o golpe de Estado de Pinochet, deu seu apoio explícito ao ditador, que a condecorou. 

Cada detalhe da história de vida dessa mulher se torna mais polêmico e cria um caos mental sobre o que pensar dessa figura histórica. 

Em Robinson Crusoé, ela soube da morte de Siqueiros e de muitos de seus antigos amigos. Lá também estavam os poucos pertences que permitiam reconstruir um pouco de sua história, principalmente sua biografia que foi escrita e editada por ela mesma nesses últimos anos de vida, mas esses itens também desapareceram: o tsunami de 2010 devastou a ilha. 

Blanca faleceu em agosto de 1985 e de uma vida inteira de política, amor e vanguarda, restaram apenas uma mala destruída e algumas fotos molhadas. O resto foi levado pelo mar, como que obedecendo ao pedido profético que fez em carta enviada para um de seus amigos: “Deixa-me desconhecida, mas bastante odiada e invejada.”

Terminamos de assistir o documentário e me sinto cambaleando nas palavras pelo resto da noite.

Nada me surpreende Branca Luz Brum ter essa fama de odiada, extremamente criticada, já que muitas mulheres dessa época com posicionamento político, com opiniões e com influência intelectual o são. Ainda mais levando em consideração que quem era contra seus ideais, a chamava de colchão das américas, por ser uma mulher livre inclusive em seus relacionamentos. Esse ódio não me impressiona, a gente sabe a facilidade de uma sociedade em odiar uma mulher. Se você pesquisar o nome dela no Google, a única coisa com a qual ela é associada são os homens com quem ela esteve e não por todo o trabalho que ela fez, porque ela foi uma mulher que se fez sozinha e foi formada em ação. 

Com toda certeza, o amor foi um dos pilares de sua vida, mas como considerá-lo o único? Como reduzí-la a uma amante de Perón, quando ela, uma mente importante por trás de um dos principais momentos históricos da política da Argentina? Quando arquitetou campanhas, fugas de cadeias, protestos, poesia e criou artigos que inflamaram leitores de uma nação que chegou a expulsá-la pelas suas ideias revolucionárias? 

Eu me agarrei à história de Blanca, talvez por vê-la como uma figura apaixonada sim pelos homens, disposta a mergulhar em paixões arrebatadoras, mas que não deixou que esses amores a tirassem dos trilhos do seu próprio caminho. Acho que, naquele momento, eu queria ver um pouco da Blanca dentro de mim, para que quando voltasse ao Brasil, tivesse mesmo motivos para dizer que colecionei experiências e seduzi homens até mesmo em Robinson Crusoé, que tivesse esse ímpeto, essa coisa vanguardista, mas no final, só a parte das experiências era verdade. Quer dizer, eu recebi convites de homens para ir com eles para outros países, mas eu recusei e não quebrei em nenhum momento meus acordos de relacionamento, pois principalmente, eu me mantive numa postura que considerava respeitável para o meu trabalho, acima de tudo. 

Penso sobre a reputação de todos esses homens que se envolveram com Blanca Luz ao longo das décadas, muitos deles casados, sabemos porque a história não os condena por quem se envolveram amorosamente enquanto no matrimônio. Sabemos porque a Blanca é quem paga essa conta tanto no seu tempo em vida, quanto agora em história. 

A lealdade de Blanca Luz a ela mesma foi uma lição de Robinson Crusoé, seu ímpeto em passar por essa vida marcando esses caminhos com os seus ideais e a capacidade de se estar presente, de participar ativamente de momentos que definem uma nação. De viver intensamente esses amores, mas também, de deixar um legado de influência e que busca sobreviver a todas as tentativas de ser apagado. Meu objetivo em narrar isso, é contribuir para trazer mais luz ao seu nome.

Raimundo me olha como quem espera uma resposta e eu digo “pode marcar, eu vou”. 

Dias depois, acompanhada por Raimundo a caminho da casa de Maria Eugênia, ele me diz que o Chile tem um jeito de receber as pessoas, que não faz muita questão de receber bem quem não se importa e honra realmente a sua história e suas pessoas. Me diz que a ilha faz isso também, que é algo da terra e se entranha nas pessoas que lá nasceram. Me disse, olhando nos olhos, que eu precisava saber que não sugere encontros com Maria Eugênia para ninguém, e que ela não recebe visitantes, que se está o fazendo, é porque a terra me recebeu. Que é entre mim e a terra que as coisas ditas nesse almoço precisavam ficar. 

Eu aceno, ele aponta uma casa logo a frente e seguimos. Antes de entrar ele me diz: 

"Nadie es profeta en su tierra”.

Quando retornei ao Brasil, descobri o motivo de todas as acusações de traição que tive que aguentar ao telefone: na verdade, eu havia sido traída. Meus gritos não foram ouvidos em fronteira alguma. 

Com muita frequência penso em retornar para Robinson Crusoé, para rever meus queridos amigos, para beber vinho em tardes ensolaradas de sábado, me sentar em torno de fogueiras em noites escuras, pular no mar gelado de madrugada. Robinson Crusoé foi muito mais do que uma experiência de viagem, foi uma oportunidade de conviver com o meio e com as pessoas. Foi uma oportunidade de me ensinar a prática da escuta como nunca antes. Foi o lugar onde geograficamente, eu tinha tudo para estar desconectada de todo mundo, mas onde eu mais me senti conectada com a vida e seus mitos. Foi onde encontrei mulheres revolucionárias em almoços ou em histórias. Onde aprendi a conviver com a ferocidade da paisagem, me fazer sozinha e ser formada em ação.

Previous
Previous

S01 E02 | Legítimo

Next
Next

S01 E04 | Vienna