Legítimo
Era domingo, último dia da 22ª Festa Literária Internacional de Paraty. Eu viajei de São Paulo para a cidade no litoral do rio de janeiro que visualmente foi congelada no tempo, mas que eu reconheço por trazer propostas incríveis de cultura, gastronomia e história muito atualizadas.
Quando criança e adolescente, eu sempre ensaiei essas viagens no futuro. Imaginava pegar o carro aos finais de semana e dirigir até cidades vizinhas para conhecer uma plantação de tomate diferente, um campo de lavandas ou assistir a um festival de jazz.
Minha família é de origem simples, então esse tipo de viagem nunca existiu na minha infância. Eu tive a sorte de conhecer o mar quando criança, pois meus pais aceitaram um trabalho no litoral do rio grande do sul. Eles eram caseiros em um sítio com vibes de condomínio: eram 8 casas de concreto com conforto, ar condicionado e mesas longas com pedras naturais. Nesse mesmo sítio, havia uma casa de madeira, com fogão a lenha, sofá antigo, vasos de plantas feitos com latas de tinta e um pátio de terra batida na sombra de uma figueira. Ao total, 9 famílias diferentes frequentavam esse lugar, sendo que a minha vivia nessa casa simples de madeira que acabei de descrever. E mesmo morando a 20 minutos da praia, eu não me lembro de finais de semana de sol na beira mar com meus pais, nem de dias da semana, já que meus pais estavam constantemente trabalhando. A oportunidade dos meus mergulhos eventuais como criança se deu pela proximidade que eu criei com os filhos dos donos deste condomínio. Com eles, eu tinha o passe livre para ir à praia, ao cinema, ao shopping, comer mc donalds, visitar parques aquáticos e brincadeiras que envolviam objetos muito distantes da realidade financeira da minha família.
Viajar, ao longo da minha infância, se resumia apenas para ver um e outro parente e nem era algo que ocorria uma vez ao ano, todos os anos… era quando dava. Ao longo da minha infância, me recordo de 2 ou 3 viagens atravessando o rio grande dos sul em direção ao noroeste do estado. A família toda em um Ford Fiesta roxo com meu pai no volante e minha mãe no banco da frente e minhas duas irmãs no banco de trás, soja abundante de um lado, milho alto do outro e o mesmo CD de músicas regionais tocando durante 8 horas. Colocar 1 cd do RBD para tocar era um privilégio que eu tinha só de vez em quando. Parávamos apenas 1 vez para fazer um lanche rápido na sombra das únicas árvores altas que haviam nesse trajeto. Eram pinheiros e não sei se era porque eu era criança, mas essas árvores eram gigantes. Eu praticamente consigo lembrar do cheiro e do gosto de parar o carro naquela sombra: o vento cortava as planícies imensas. O olho nunca alcançava o final daqueles campos, e o gosto que me vem à boca é de… pão com linguiça. Minha mãe assava o pão no dia anterior da viagem, enquanto estava uma pilha de nervos pensando nas malas, em não esquecer de nada, em levar toalha de banho para não incomodar a visita - e na verdade, hoje eu já nem penso que não era só para não incomodar a visita, mas sim por conta da escassez que boa parte da minha família vivia: não tinham toalhas suficientes para todos. toalhas de banho eram um luxo e para muitos membros da minha família, ainda são. Eu imagino minhas tias do interior revoltas com essa informação que eu acabei de falar, imagino elas bravejando "meu deus, Marieli! a gente daria um jeito! não precisava trazer nada!", pois se nega a pobreza com todas as forças que se tem de onde eu vim. Sempre ouvi falar sobre a abundância, seja de chuvas, de melancia crescendo na roça, de banha para cozinhar, mas é inegável olhar para trás e ver a falta de estrutura, educação, oportunidades e aquilo que nem se sabia que existia.
Depois da breve pausa na estrada, passamos 4 ou 5 dias pingando de casa de parente em casa de parente. A coisa mais diferente que eu via eram rios imensos, uma plantação de fumo, o gato branco gigante da minha tia que viveu por mais de 20 anos e o casal de perus de outros tios. E eu não sei distinguir o tempo entre esses acontecimentos, não sei se as minhas lembranças são da primeira viagem, da segunda ou da terceira, pois até hoje, quando volto para lá, tudo permanece igual. A plantação de fumo, a soja tomando conta de todos os lados da estrada, o rio imenso. Até pouco tempo atrás, até o gato da minha tia ainda estava vivo.
O mundo era assim e diferente do que muitas pessoas podem pensar, essa não é a vida boa. A depressão, a ansiedade, as doenças causadas pelo convívio com agrotóxicos, a pressão alta, a alimentação que gira em torno de ultraprocessados e doses cavalares de açúcar assolam a saúde da minha família há muitos anos.
Parece uma grande ironia viver em um lugar onde tudo que você planta nasce, mas pouco disso de fato faz parte da sua alimentação no dia a dia. A falta de informação e falta de acessos são algumas das razões pelas quais o caminho do campo e da indústria se cruzam para promover uma vida incompatível com a saúde.
Mas vindo dessa realidade, também posso dizer que pesa muito viver comendo todo dia a mesma coisa, ouvir, ver e falar sempre a mesma coisa. O ultraprocessado é como a única novidade que cabe naquele lar que é mais acessível. É algo diferente, que não dá para fazer em casa e não exige trabalho pesado para ser feito. É diferente, é gostoso, não é parecido com a roça, não tem cheiro das casas do interior e tem cores vibrantes nas embalagens.
Se uma família inteira vive assim, as chances de viver uma vida exatamente como a dos familiares, é imensa.
Por isso, talvez, eu considere esse convívio tão próximo de 8 anos da minha vida com outras famílias de uma condição social oposta a da minha, como um dos principais fatores de incansavelmente buscar o diferente. Aliás, o diferente da minha família, mas o igual ou muito parecido de outras. É um jogo de imitação, mas quem pode ou não imitar?
Foi então que eu mergulhei no mundo de Édouard Louis.
O escritor foi um dos principais paineis da FLIP e suas obras trazem as problemáticas sociais para um lugar de foco e crítica.
Édouard Louis nasceu na França, em 1992. Cresceu numa família pobre, na qual foi o primeiro a frequentar a universidade, tendo sido admitido numa faculdade de Paris em 2011 como aluno de sociologia. O seu pai foi trabalhador de fábrica durante uma década até que um dia no trabalho, um contentor de armazém caiu em cima de suas costas deixando-o acamado e incapaz de trabalhar. Esse ocorrido, foi uma das fagulhas que despertaram em Edouard a vontade de escrever sobre sua vivência, sua família, e ele estreou na literatura com O FIM DE EDDY (2014), tendo atualmente mais de 6 livros publicados e traduzidos para o portugues.
Ouvir o Édouard falando em sua mesa da FLIP me atravessou com uma certa brutalidade, principalmente nos momentos em que discutiu sobre as violências enfrentadas desde cedo dentro de casa, sobre enxergar sua infância como uma infância de classe, sobre um caráter fluido que destina à violência e como a tentativa de escapar desse destino o levou a recriar a si mesmo e renegar essa pobreza. Essa leitura me transportou para alguns momentos da minha infância.
A noite, após a longa viagem, quando se formava a roda de conversa dos meus pais e os parentes, eu procurava algum lugar próximo aos adultos para observar o chimarrão passar de mao em mao, mas nao próximo o suficiente para que alguém notasse que eu ouvia atentamente todas as palavras que trocavam. Primeiro, falavam do preço da gasolina, da soja e do açougue. Evoluia para a geada que queimava as flores da minha tia e a plantação naquele inverno, até que, eventualmente, chegava ao ponto que captava por completo a minha atenção.
Nessa hora, eu me esquivava dos meus primos e estampava um desinteresse falso na minha cara de criança de 7 anos enquanto puxava um toco de madeira que servia de banco para perto do fogão a lenha e nem que me oferecessem doce, eu sairia dali.
Os adultos iniciavam a roda das atualizações que alteravam a ordem daquele pequeno mundo rural, que de pacato, pode ter bastante coisa, mas não quando se trata das pessoas que dizem “sofrer dos nervos”.
Eu ouvia histórias sobre como vizinhos ou conhecidos mais distantes passavam por situações crueis e violentas em seus lares e plantações, sobre famílias inteiras que estavam endividadas e como a plantação, o único sustento, foi destruída pela fúria da geada e como os deixou assolados e sem saída. Ouvia histórias sobre violência doméstica, sobre filhos expulsos de casa e principalmente, ouvia histórias sobre pessoas que, pela doença “dos nervos”, autoprovocaram suas mortes de maneiras que não me cabe descrever.
Mesmo criança, você já tem uma certa noção sobre o quão sérias são as situações experienciadas no reino das coisas adultas, mas depois de crescer, você é capaz de fazer conexões e adquirir conhecimentos que te apresentam fatos tristes e que remodelam a sua infância. Essa é uma dessas situações para mim.
Para falar sobre essas lembranças de infância e como foram remodeladas na vida adulta, é necessário falar sobre como o aumento do uso de agrotóxicos em escala global adquiriu níveis preocupantes de comprometimento da segurança alimentar, ambiental e da saúde humana. Entre 1990 e 2018, a quantidade de agrotóxicos utilizados no Brasil sofreu um aumento de 758%.
O trabalho agrícola tem uma série de fatores de risco, mas os agrotóxicos são os mais preocupantes devido aos danos crônicos e agudos causados à saúde do trabalhador. Embora a literatura sobre o assunto tenha crescido no Brasil nas últimas décadas, ainda não é suficiente para estabelecer com precisão a totalidade do impacto do uso intensivo de agrotóxicos na saúde do trabalhador agrícola brasileiro, mas os rastros são bem evidentes e se tornaram cada vez mais claros para mim, ao longo do meu processo de analise da minha infancia e condição social.
O Rio Grande do Sul lidera por anos como o estado que usa a maior quantidade de agrotóxicos em suas plantações e os riscos associados a isso vem se conectando pela vulnerabilidade social e econômica dos trabalhadores que os utilizam.




Na minha família, existem agricultores que lidam ou lidaram com o “veneno”, como é chamado no interior, durante muito tempo. A discussão sobre a negociação, a compra e a aplicação do mesmo, faziam parte de eventuais conversas familiares e ao crescer, percebo o quanto esses processos, esses contratos de compra de sementes e agrotóxicos, são organizados para deixar o trabalhador rural num labirinto sem saída.
O agricultor assina contratos anuais de compra e venda firmados sob o chamado “sistema de produção integrada”. As empresas que vendem os agrotóxicos enviam todas as informações descritas em documentos complexos e contratos ardilosos, mas dão uma receita mais simples verbalmente para os agrotóxicos e falam: “Passa”. Não contam que tipo de produto é exatamente ou que é preciso se proteger. Tem vezes que é “ah, usa a roupa!”, mas aí faz calor e o trabalhador retira o EPI - que também não comprova 100% de segurança contra contaminação, pois ele está acostumado a fazer esse trabalho ano após ano e vai se descuidando.
Os padrões de uso e legislações desses produtos são fundamentados com base em estudos que presumem o manejo por meio do que a gente vai chamar de um “indivíduo médio”, esse é um termo cunhado pela literatura, uma construção teórica que representa as características mais comuns de uma população que nem sempre reflete a realidade, e nesse caso, acaba por intensificar os danos à saúde e ao meio ambiente.
Esse problema é um desafio para qualquer país que utiliza um modelo agrícola baseado no uso intensivo de insumos químicos, mas especialmente em países em desenvolvimento como o Brasil, que ainda observa-se trabalho infantil, juvenil, de idosos e de pessoas com diversos problemas de saúde.
Por isso o trabalhador retira o EPI, por isso os casos de contaminação notificados são frequentes e se estima que para cada caso notificado, tem 50 que não foram.
Evidentemente, o contexto socioeconômico da grande maioria das zonas rurais brasileiras apresenta populações de alta vulnerabilidade. Em função da atenção insuficiente que recebem do Estado em termos de educação, saúde, saneamento e assistência agrícola, os efeitos adversos na saúde do trabalhador agrícola tendem a se intensificar .
Uma pesquisa publicada em 2017 por profissionais da Secretaria de Saúde do Paraná, identificou transtornos psiquiátricos como depressão e ansiedade e polineuropatia em agricultores que haviam sofrido intoxicações por agrotóxicos: a utilização prolongada de diferentes agrotóxicos pode ocasionar neuropatias tardias, síndromes neurocomportamentais e distúrbios neuropsiquiátricos, com alta incidência de autopromover a morte. A pesquisa se soma a mais de uma dezena de estudos científicos feitos sobre as condições de saúde de agricultores do tabaco no Brasil.
Ainda que pouco conhecida pela população em geral, a fumicultura brasileira ostenta números altos de produção anual, colocando o Brasil como o segundo maior produtor de folhas de tabaco no mundo e líder mundial em exportação do produto. De sol a sol e muitas vezes madrugada adentro, cerca de 149.060 mil famílias cultivam e colhem, manualmente, o fumo. Nas áreas rurais de pequenos municípios nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, está concentrada 98,2% da produção nacional. Meus tios são produtores de tabaco.
E longe de ser uma piada engraçada, já teve episódio de secretário de saúde brincando que tinha que colocar antidepressivos no sistema de água que abastece a cidade, pro remédio já sair na torneira. Nas cidades cuja economia gira em torno do tabaco e a maior parte da população vive em sítios plantando fumo, a prefeitura oferta mais classes de antidepressivos do que o padrão do SUS para o país.
O Rio Grande do Sul possui os maiores índices de mortes autoprovocadas, há décadas. Os municípios fumicultores estão entre aqueles que mais as registram.
O neurologista da Unifesp, Henrique Ballalai Ferraz realizou uma pesquisa à procura de sinais de Parkinson em agricultores de tomate e morango no interior de São Paulo e apontou uma relação com o manganês nos fungicidas utilizados, os mesmos das plantações de fumo, tão comuns no sul do país. A pesquisa, realizada com colonos, constatou um índice de 44% do grupo de pesquisa com morbidade psiquiátrica, 65% com ansiedade e 25% de pessoas que dizem "sofrer dos nervos".
Quando criança, não era incomum ouvir ao longo das conversas dos adultos que fulano de tal ficava "irritado por qualquer coisa", criando situações de violência em casa. E aqui, eu volto para a literatura de Édouard para relacionar a maneira como ele aborda a violência como algo cíclico: em seu núcleo familiar, o pai foi violentado pelo estado, pelas políticas públicas, por não poder prover para a sua família através do trabalho que o caracteriza como indivíduo. Então, em casa, ele se tornava o agente que despejava essa violência em direção à mãe de Édouard, como violência física e psicológica, em direção a Édouard com insultos e ameaças constantes. Uma vez vítimas desse ciclo, essa violência flui deles como indivíduos em direção a si mesmos ou a outros membros do mesmo núcleo.
A violência se torna uma corrente que corre livremente entre os membros da família, mas a cada dia que passa, fica muito claro que uma das vertentes dessa violência da qual eu tive conhecimento tão nova, tem como pano de fundo o estresse e a violência do estado a que é submetido o colono, que trabalha o ano inteiro para uma única colheita e está sujeito o tempo todo a algo dar errado: granizo ou calor excessivo fora de hora, pragas na lavoura e o preço baixo na hora da venda. Tudo isso podendo ser agravado pelas mudanças climáticas e claro, pelos efeitos dos produtos químicos usados.
Conviver com essa realidade é bem complicado, pois ela está ali ameaçando constantemente uma projeção de vida saudável e em comunidade
Édouard traz uma autobiografia muito política durante as páginas de “Quem Matou Meu Pai”, onde vemos um escritor que, após anos, compreendeu que seus pais, assim como seus avós, foram moldados por frustrações e trabalhos pesados. O livro mostra como a origem humilde do pai, suas noções de masculinidade e o descaso do Estado destruíram sua vida. Em decorrência deste comportamento, seu pai não conseguia mostrar o amor que sentia pelos filhos e pela mulher. Ao se separarem, cada membro da família torna-se um estranho.
Essa literatura do Édouard vem também como uma forma de vingar os pais, citando exatamente os nomes dos políticos que estavam por trás dos cortes de benefícios do governo para o pai impossibilitado de trabalhar e o descaso com a classe trabalhadora.
Édouard diz que não tem medo de se repetir, porque o que escreve não atende às exigências da literatura, mas às da necessidade e da urgência, às do fogo. Eu pensei sobre isso ao escrever o primeiro ato desse episódio, pois parece repetitivo falar que o uso de agrotóxico de forma desenfreada no país é extremamente prejudicial, mas reverberar isso e mostrar como esse impacto permeia a nossa sociedade nas mais variadas vertente é uma necessidade, uma urgência, queima. \




Sentadas na calçada da praça principal de Paraty, ouvíamos Édouard falar sobre seu livro Mudar: método, que é permeado por essa ideia de transformação, que neste livro é desenvolvida até seu ponto máximo, sendo esse o projeto que o consolidou como um dos grandes nomes da literatura contemporânea. Em Mudar: método, Édouard narra o processo de amadurecimento de Eddy, sua versão criança e adolescente que nasceu nessa classe operária em uma pequena cidade no norte da França, até se transformar, ativamente, em Édouard Louis, escritor de sucesso internacional.
Existem na narrativa de Édouard uma série de símbolos que carregam os abismos sociais entre a vida que vivia enquanto criança e adolescente e vida que descobriu ao trocar de escola e conviver com crianças que tinham estruturas sociais e familiares diferentes:
Me lembro especificamente de um trecho da leitura onde Édouard discorre sobre a mudança drástica que teve em seu armário e seu corpo, mas que não foram fruto de um processo natural da adolescência e de ordem biológica, e sim um plano estruturado para ter outra aparência e se vestir de outra forma. Na sua versão criança, Eddy, ele relata a presença de roupas esportivas, largas, ainda assim, parecidas com o que se via na televisão naquele momento, mas eram muito diferentes das roupas que compunham o armário dos colegas de sua nova escola: camisas ajustadas, alfaiataria, gravata, sapatos sociais.
Os dentes também são vistos como uma certidão de nascimento social, eles transparecem a falta de cuidado e também as escolhas alimentares. Édouard traz essa questão da alimentação logo nas primeiras páginas do livro como um ponto central e que causava nele essa certeza desses abismos sociais.
Acho que como uma criança que pertenceu a uma classe social e conviveu muito com outra, enxergar esses símbolos também faz parte da minha história. Existe um episódio em si que me marcou muito, eu devia ter em torno de 7 anos e me lembro de estar a mesa com pelo menos outras quatro crianças e três adultos que faziam parte desse outro universo, dessa outra classe social. Meus pais não estavam à mesa, com toda certeza eles estavam trabalhando, mas eu estava ali, quase como uma futura candidata a burguesia, quando um dos adultos apontou que eu segurava os talheres de forma incorreta, o garfo não estava na mão certa, bem entre aspas. Ali, naquele momento, algo que já era muito claro para mim pela diferença de roupas, de alimentos, de brinquedos e de oportunidades de vida, ficou mais visível ainda, ficou gravado, pois foi verbalizado.
Quando Édouard fala que não teve apenas uma infância, e sim, uma infância de classe, eu consigo me relacionar muito com esse trecho, pois na semana que se seguiu do ocorrido dos talheres, eu fiquei praticando continuamente isso na minha própria casa.
Lembro da confusão dos talheres no prato, tentando de uma forma elegante dar uma garfada no macarrão misturado ao feijão e de uma certa frustração, mas determinada a ser como as crianças que eu adorava e via os pais adorando-as a cada bom sinal de educação e ética.
No próximo final de semana, me sentei à mesa com praticamente o mesmo grupo de pessoas e eu esperei pelo elogio na forma como eu segurava os talheres, era uma questão de honra para minha criança. Ao final da refeição, com as mãozinhas cansadas e exausta mentalmente por me observar a cada segundo, o elogio chega: a Marieli já está até comendo com os talheres corretamente!
Situações como aquela, se repetiram ao longo da minha infância e adolescência, e percorreram também minha vida adulta. Eu visitava meus tios no interior, pequenos agricultores com baixa escolaridade e uma plantação de fumo que mais os endividavam do que alimentavam e durante os verões, quando o sítio em que eu morava ficava cheio, dava voltas de jet ski na lagoa, passava as tardes na piscina e visitava parques aquáticos constantemente aos finais de semana.
Eu saí de uma cidade com menos de 30 mil habitantes para morar em um bairro com 3x mais população e uma sensação constante de que tudo que eu olhava custava muito dinheiro em São Paulo.
O medo de não se adequar, o medo de não falar corretamente, do sotaque gerar constrangimentos. São Paulo é uma escola cruel, na qual se você tira boas notas, é bem recompensado, porém o nível é altíssimo.
Édouard Louis compreendeu que existem comportamentos, hábitos, modos, que são destinados a ser reproduzidos apenas por uma classe social determinada e que adotar esses hábitos só se é permitido, quando os recebemos do berço, trazendo um julgamento capaz de determinar o que é legítimo e o que ilegítimo em cada gesto do comportamento humano baseado em sua origem social.
Assim como Édouard, também precisei chegar à vida adulta para realmente entender a minha infância.
A verdade é que o passado molda a gente e deixa marcas explícitas e até não tão explícitas de onde se veio. E acredite, não é sobre ter vergonha, é sobre ter acesso para saber lidar com algo que é inerente à vida: a dor.
É muito comum a gente ouvir do trabalhador rural que ele trabalha desde que se conhece por gente. Essa frase em si já é problemática, porque ninguém é somente a força de trabalho que produz, mas ele sente dor ao não poder trabalhar mais, pois como indivíduo, se reconhece no que faz e ao não poder mais praticar sua profissão, viver sua rotina, perde a si mesmo.
A constante exposição a agrotóxicos e os males acarretados por tal, como a ansiedade e a depressão são tratadas sempre com caráter patológico, quase um acontecimento despretensioso da vida e que nada tem de relação com as políticas públicas, o estado e o sistema, mas nem sempre nosso sofrimento é patológico. Sentimos tristeza, melancolia, dor, angústia. O trauma tá aqui e ele é parte da vida, independente da condição social, mas quando você tem acessos a ferramentas para tratar a sua dor tanto de forma patológica quando para elaborá-la em poesia, arte, escultura, música, artesanato, histórias, cinema e o que mais imaginar, a gente vai além de um projeto de saúde, a gente entra num projeto de VIDA.
Tudo que vivi, todas essas facetas de mundos tão diferentes e quase impossíveis de se encontrarem, me acendeu as fagulhas da escuta e da escrita. Estar em contato e ter passabilidade para certos acessos me abriram portas para informação, onde eu consigo conectar o sofrimento de gerações passadas da minha família, minhas histórias de infância, o meu sofrimento como mulher e os acontecimentos políticos e sociais da época. Mas essa luz tá aqui, tá na minha cabeça, tá me perseguindo há anos para virar alguma coisa, assim como a literatura do Édouard, que era insuportável de não ser escrita.
Escrever sobre o próprio sofrimento tem um grande poder de desvelamento das violências do mundo e convoca as pessoas a acreditarem que suas histórias e suas dores são dignas de ser narradas.
Penso também, que políticas conservadoras fazem isso com a gente, de se negar de onde se veio, de se calar sobre as histórias difíceis das condições da infância e familiares, pois quanto menos se fala sobre uma dor, quanto mais as violências viram tabus, mais elas deixam de ser um problema a ser resolvido e um culpado a ser encontrado.
Até hoje quando me sento em uma mesa num importante restaurante de são paulo e derrubo comida no colo ou dou uma gargalhada mais alta ou troco os talheres de mão, eu viro essas vozes daquela mesa de mais de 20 anos atrás, e me detesto. Esse é o problema da violência social: você a comete contra si mesmo. Esse sentimento de nunca pertencer.
Mergulhar nesses assuntos e narrar essas histórias faz parte dos meus objetivos com esse programa, pois me dá mais ferramentas para elaborar minha história e te convidar a analisar a sua. Ser protagonista e ser parte efetiva da transformação de como a gente se vê e descobrir maneiras de como conviver com isso, também é ter saúde.
Referências de pesquisa
Imagens: New York Times